Pesquisas indicam necessidade de considerar outros aspectos além da criminalidade no debate sobre acesso a armas de fogo

A ampliação do acesso legal às armas de fogo no Brasil está na pauta, a partir da promessa de campanha do agora Presidente eleito Jair Bolsonaro. Na última semana, por exemplo, O Globo registrou o aumento na procura por clubes de tiro no Rio de Janeiro e a Folha de S. Paulo destacou a declaração de Eduardo Bolsonaro de que o pai deve ampliar o acesso às armas por decreto presidencial, prescindindo assim da aprovação do Congresso Nacional. Mas a notícia que apareceu em vários dos principais veículos de imprensa do País foi sobre estudos que associam legislações mais rígidas de controle de armas de fogo à prevenção da morte de crianças, com matérias em O Globo e no Estadão, dentre vários outros.

A notícia foi motivada por três estudos anunciados no evento anual da Associação Americana de Pediatria, realizado nos Estados Unidos entre 2 e 6 de novembro. Um deles verificou que, nos estados dos EUA com legislações mais flexíveis sobre compra, posse, porte ou guarda de armas, acontece o dobro de mortes de crianças causadas por essas armas do que naqueles onde as leis são mais rígidas. Ou seja, quanto mais armas acessíveis, mais crianças morrem. Um segundo estudo apontou a dificuldade das crianças diferenciarem armas reais das de brinquedo, o que aumenta os riscos, e o terceiro que crianças menores de 12 anos têm mais chances de serem feridas. Nos Estados Unidos, ferimentos por arma de fogo são a segunda maior causa de mortes de crianças, com quase 3 mil ocorrências a cada ano. No Brasil, esse número já é de 9 mil crianças mortas por ano.

Em editorial do dia 3/11, intitulado “Desdesarmamento”, a Folha de S. Paulo se posiciona claramente contrária ao movimento de tornar irrelevante o chamado Estatuto do Desarmamento. No entanto, o jornal faz uma afirmação que, na minha avaliação, é infeliz, ao dizer que “encontram-se no mercado […] estudos de solidez variável destinados a sustentar os diferentes posicionamentos”. Embora possa ser verdadeira a afirmação, ela me parece deslegitimar toda a pesquisa na área – que certamente tem estudos sérios e robustos –, comprometendo a confiança das pessoas nesses estudos. Sua construção e apresentação naquele contexto me parece desqualificar toda uma produção científica que, embora ainda longe de ser suficiente, coleciona cada vez mais evidências da não eficácia do armamento da população civil como estratégia de segurança pública e, de outro lado, dos riscos que essa política representa para crianças e, também, para os adultos que interagem com os civis armados.

Um documento produzido e publicado nos Estados Unidos em 2018, intitulado “The Science of Gun Policy” (a Ciência das políticas públicas sobre armas de fogo), fez a revisão crítica das pesquisas realizadas desde 2003 sobre os efeitos dessas políticas públicas, no contexto dos EUA. Uma percepção importante é que há grande carência de investigações metodologicamente rigorosas sobre a temática. Porém, algumas conclusões já encontram sustentação nas evidências científicas, dentre as quais a mais sólida mostra justamente que as leis de prevenção do acesso de crianças às armas de fogo reduzem ferimentos e mortes por acidentes com essas armas. Também há evidência, moderada, de que a checagem de antecedentes antes da autorização do acesso às armas reduz suicídios e homicídios. O documento é extenso e muito rico em informações, pelo que recomendo a leitura às pessoas que se interessam pela discussão.

No Brasil, o jornalista Carlos Orsi já indicava, em 2013, a necessidade de realização de mais pesquisas e, em 2015, em um par de textos sobre evidências científicas relacionadas ao assunto publicados na revista Galileu (confira aqui o Texto 1 e o Texto 2), registra que, embora a relação entre quantidade de armas disponíveis e combate ao crime seja uma questão complexa ainda por investigar, outras já estão mais definidas, dentre elas principalmente o fato de que a “pessoa de bem” com posse de uma arma tem chance muito maior de usá-la contra alguém conhecido do que contra um “bandido”. Outra material relevante é o estudo publicado em 2012 pelo Ipea (Instituto de Pesquisas Econômicas Aplicadas), com dados do estado de São Paulo, mostrando que mais armas estão associadas à elevação nos índices de crimes violentos e, de outro lado, NÃO levam a uma diminuição nos crimes contra o patrimônio, contrariando a ideia de que uma vítima armada desencorajaria a ação criminosa.

Assim, embora possa ainda não existir um consenso científico sobre uma relação causal entre o porte de armas de fogo pela população civil e os índices de criminalidade, há um conjunto relevante de evidências sobre outros efeitos deletérios da ampliação do acesso às armas, e o princípio da precaução deveria nos impedir de apoiar a flexibilização da legislação no Brasil e, além disso, levar à exigência de mais pesquisas não porque seja necessário justificar o Estatuto do Desarmamento, mas sim porque é preciso provar que há benefícios que valham a pena, se é que isso é possível.

Boas leituras, e uma boa semana.

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