Vírus mutante? Florestas escondidas? Ciência, esta ilustre desconhecida Mariana Pezzo 19 de maio de 2017 Coluna Mídia e Ciência Nesta semana, não fui exatamente eu que escolhi a minha pauta, já que seria difícil falar de outro assunto por aqui. Não. O tema da coluna não é o mais recente escândalo da política nacional. Este se distanciaria muito dos objetivos específicos de Mídia e Ciência. Porém, deixo aqui a ponderação de que muitas das reflexões já compartilhadas na coluna podem ser úteis à compreensão do modo como a crise atual vem sendo acompanhada pela Imprensa, e de como ela começou. É importante estarmos atentos a isto. Mas nosso assunto é outro. No noticiário de Ciência, o destaque da semana surgiu já na segunda-feira, com a publicação de estudo da Fiocruz sobre o sequenciamento do genoma do vírus da febre amarela. Todos os principais veículos de comunicação deram a notícia e, em geral, de maneira cuidadosa, ainda que me pareçam bastante diferentes títulos como os da Folha de S. Paulo – “Vírus de febre amarela teve mutação inédita que pode ter provocado surto” – e do Estadão – “Estudo liga surto de febre amarela a mutações inéditas” –, por motivos que explicito a seguir. O sequenciamento do genoma de vírus retirados de amostras de dois macacos encontrados mortos no final de fevereiro no Espírito Santo resultou na identificação de oito variações em sequências genéticas ainda não descritas na literatura, sete delas em proteínas envolvidas na replicação viral. Segundo os responsáveis pelo estudo, o resultado “pode ser uma explicação para este ser o surto mais severo das últimas décadas”, caso essas mutações tenham tornado o vírus mais apto a se difundir rapidamente. Atenção ao “pode ser”, construção ausente do título do Estadão. Os pesquisadores destacaram, no artigo e, também, nas entrevistas sobre os resultados, como outras pesquisas serão fundamentais à compreensão do real significado dessas primeiras descobertas, já que não se sabe se essas mutações são específicas dos microrganismos envolvidos no surto atual – ou seja, se já não estavam presentes há mais tempo, sem resultar nessa rapidez de disseminação – e, tampouco, suas implicações para a saúde pública. Tudo o que temos são pistas de uma possível explicação para o problema que estamos vivendo, e isto já é muito importante, mas estamos apenas na largada de uma longa trajetória. Porém, apesar do deslize no título do Estadão, tanto ele quanto os demais veículos onde vi a notícia publicada registraram as ressalvas dos pesquisadores – além de tranquilizarem a população sobre a eficácia da vacina, o que parece reproduzir também um cuidados dos autores do estudo ao falarem sobre ele. Neste caso, eu acho que, além de uma certa tendência nossa em registrar apenas parte da informação – e, é claro, de uma sensibilidade totalmente justificada à questão da febre amarela –, a origem do risco de nos apavorarmos diante da ideia de um “vírus mutante”, ou de tomarmos uma hipótese inicial como verdade absoluta, está em outro lugar. Essa origem me parece estar relacionada ao desconhecimento de grande parte da população sobre como a Ciência funciona, como é construído o conhecimento científico: dentre outras características, em etapas, colaborativamente, muitas vezes com um resultado mais recente mostrando que hipóteses sugeridas anteriormente não se confirmam, e sem que a meta final seja a certeza, mas sim a identificação da melhor explicação diante das evidências disponíveis. Assim, temos uma pista, que desencadeia e justifica uma determinada linha de investigação, que pode se concretizar simultaneamente a outras, com mais ou menos sucesso, e isto não é um problema, uma falha, mas sim o caminho pelo qual o conhecimento científico é construído, nem sempre na velocidade que gostaríamos. Embora a mídia certamente não seja a única culpada desse desconhecimento, ela também tem a sua parcela de responsabilidade, devido ao que muitas vezes é denominado como “mitologia dos resultados”: a tendência a noticiar apenas os resultados da pesquisa científica, sem menção aos processos, a métodos, instrumentos, controvérsias e dificuldades, como se esses resultados surgissem de repente, de mentes geniais que, quase sem querer, encontram as respostas para as nossas questões mais importantes. Tivemos um outro exemplo de possíveis problemas decorrentes desse distanciamento do fazer científico nesta semana, este destacado por Maurício Tuffani no seu Direto da Ciência, no Boletim de 12 de maio. Lá, Tuffani alerta para as possíveis interpretações equivocadas do título de um estudo publicado naquele momento na Science, que diz que as “Florestas da Terra cresceram 9% em novo levantamento por satélite” (em tradução minha). Isto porque o que de fato aconteceu foi o uso de tecnologias mais avançadas, com maior resolução, que permitiram a identificação de florestas antes escondidas da vista humana. Ou seja, não houve, como poderíamos pensar, uma recuperação em áreas já conhecidas. Neste caso, o que pode faltar é o conhecimento – e a reflexão – sobre como a Ciência muitas vezes avança pela construção de equipamentos que nos permitem ver com mais detalhes e precisão o mundo à nossa volta, seja na escala humana ou nos universos astronômico e nanométrico. Para que tenhamos mais elementos para compreender a questão da febre amarela, minha dica de leitura desta semana é o artigo original publicado na revista Memórias do Instituto Oswaldo Cruz, ou, se a disposição não for tanta, a notícia publicada no site da Fiocruz, uma das mais completas dentre as que li. E, embora ainda esteja começando a leitura, já sugiro o livro Creating Scientific Controversies, de David Harker. Infelizmente ainda não há tradução para o Português, mas, considerando o que já li, me parece contribuição bastante relevante e, também, um texto relativamente leve e bastante agradável justamente sobre especificidades do fazer científico. Boas leituras, e que seja uma boa semana para nós e o nosso país.