Um homem mordeu um cachorro? Mariana Pezzo 23 de junho de 2017 Coluna Mídia e Ciência Dois conjuntos de notícias publicadas na semana que passou me levaram a uma viagem no tempo, de volta à faculdade de Jornalismo, às aulas sobre faits divers, sobre estrutura e critérios de seleção da notícia. O faits divers – do Francês, significando fatos diversos – é um gênero de notícia, caracterizado justamente pela abordagem de assuntos não categorizáveis nas editorias tradicionais, de casos inexplicáveis e/ou excepcionais, de coisas inusitadas e/ou pitorescas e, sobretudo, de fatos que podem ser compreendidos sem a necessidade de um contexto. Longe de serem insignificantes, os faits divers mereceram um artigo exclusivo de Roland Barthes, teórico de grande importância para os estudos de Comunicação. Em grande medida, sua relevância está na atração que exerce sobre leitores e, mais recentemente, espectadores. Uma espécie de faits divers é a história sobre o turista britânico de férias na Croácia que teve uma crise de amnésia após um mergulho no mar gelado, publicada no site da BBC Brasil no dia 19 de junho. Mas a notícia que me lembrou deles foi outra, e teve muito mais visibilidade: o estudo internacional que situou o início da amizade entre gatos e humanos há 10 mil anos, no Oriente Médio. Não parece inusitado, e até um pouco bizarro, que a Ciência dedique tanta atenção a essa questão, analisando o DNA mitocondrial colhido em amostras dos restos de cerca de 200 gatos, retirados de múmias egípcias, jazidas vikings e cavernas da Idade da Pedra, dentre outros locais? Ou será que eu penso assim por preferir os cachorros aos gatos na escolha dos meus animais domésticos? Uma explicação para essa sensação de estranheza pode estar também nos títulos escolhidos para as notícias: “A mais exaustiva biografia dos gatos já feita pela ciência”, no site em Português de El País, ou “Muito antes de dominar a Internet, os gatos dominaram o mundo” [tradução minha], em The Washington Post. Mas o estudo, em si, não tem nada de piada. O artigo foi publicado em uma revista do grupo Nature – Nature Ecology & Evolution –, assinado por 29 autores de vários países. As análises revelaram duas origens distintas para a domesticação do gato: a primeira conectada à revolução agrícola no Oriente Médio e a segunda mais recente, no Egito, iniciada há pouco menos de 4 mil anos, mas intensificada apenas na Idade Média. Os achados sugerem uma relação inicial menos “íntima”, com os gatos se beneficiando dos roedores que proliferavam na colheita humana – e sendo mais dóceis para poderem ali permanecer – e os humanos ganhando com esse controle natural de pragas. A domesticação propriamente dita e a seleção intencional de algumas características foi tardia, indicando um processo mais lento do que o que aconteceu com outros animais. Deixando de lado discussões sobre a relevância de conhecermos a pré-história dos gatos tão a fundo assim – o estudo traz muito mais detalhes! –, a declaração de uma das pesquisadoras reproduzida no The Washington Post nos dá algumas pistas de outras implicações da pesquisa. O jornal registra que o interesse está menos nos “gatinhos” – a cientista, inclusive, brinca dizendo ser um pouco misterioso para ela o motivo pelo qual as pessoas são tão fãs desses animais –, e mais nas histórias evolucionárias que a domesticação pode contar. “A evolução é mais rápida quando você seleciona alguns traços. Ao analisar esse tipo de processo de seleção, você tem um modelo de como a evolução trabalha”, diz Eva-Maria Geigl. Para concluir, passemos dos gatos para o cachorro do título desta coluna. Ele alude a uma frase do jornalista norte-americano John B. Bogart que todos nós, jornalistas ou estudantes de jornalismo, ouvimos em nossos primeiros dias de aula: se um cachorro morde um homem não é notícia, mas se um homem morde um cachorro é. A madalena que me levou a esta viagem no tempo foram as notícias – ainda mais amplamente reproduzidas do que a dos gatos – comunicadas em uma coletiva de imprensa pela Nasa também na segunda-feira, dia 19: o telescópio espacial Kepler identificou mais 219 novos candidatos a exoplanetas em nossa galáxia, 10 deles aparentemente com características similares às da Terra. Oras, este me parece só mais um cachorro mordendo um homem, já que, com esses números, chegamos a 4.034 candidatos a exoplanetas (cerca de 2.000 já confirmados) no catálogo do Kepler, 49 deles situados na zona habitável de suas estrelas! Seguimos, portanto, aguardando ansiosamente a notícia análoga à mordida humana em um cachorro, sem desprezar, de forma alguma, a extrema relevância da missão Kepler, que já concluiu sua fase principal em 2013 e se aproxima do fim definitivo, previsto para 2018. Sobre as suas principais conclusões, recomendo a leitura do texto de Salvador Nogueira. Boas leituras, e boa semana!