Polêmicas recentes sobre o Censo 2020 e levantamento da Fiocruz do uso de drogas no Brasil evidenciam a relação entre informação e qualidade da gestão pública

As chamadas “políticas baseadas em evidências” são fundamentais à qualificação da gestão pública. Quando usamos o termo, estamos fundamentalmente falando em processos de tomada de decisão subsidiados por informação de qualidade, e não pela “intuição”, ou pelo interesse, de um ou outro gestor ou segmento social. Para que isso seja possível, é preciso, de um lado, contar com mecanismos robustos e confiáveis de produção dessas informações e, de outro, priorizá-las no momento de definir e avaliar políticas. Dois episódios recentes mostram como, no Brasil, essas práticas estão em risco.

No dia 29 de maio, que deveria ter sido de comemoração pelos 83 anos do IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística), funcionários do órgão protestaram contra a redução do número de perguntas nos questionários do Censo 2020, que está entrando em sua fase final de preparação. Segundo a direção do Instituto, as razões não são exclusivamente orçamentárias, mas também visam melhorias no processo de coleta de informações, o que é refutado por técnicos do IBGE e outros especialistas. Os críticos à mudança alertam, por exemplo, para a importância dos dados do Censo – realizado a cada 10 anos – na avaliação dos impactos de políticas públicas adotadas nos municípios, o que seria prejudicado pelos cortes programados.

A segunda polêmica diz respeito ao engavetamento, pelo Governo Federal, do 3º Levantamento Nacional sobre o Uso de Drogas pela População Brasileira, realizado pela Fiocruz a partir de aprovação em edital da Secretaria Nacional de Políticas sobre Drogas. O estudo foi contratado em 2014, no governo de Dilma Roussef, e seus resultados deveriam ter sido divulgados em 2017, já no governo de Michel Temer, o que não aconteceu. Aparentemente, o assunto voltou à tona porque, no dia 1º de abril, o The Intercept publicou texto em que afirma ter conseguido acesso exclusivo aos dados do relatório de 520 páginas produzido pela Fiocruz. O documento indica que não existe no País no Brasil a “epidemia de droga” tão presente no discurso de Osmar Terra, atual ministro da Cidadania, que afirmou não confiar no estudo da Fiocruz. Dentre outras conclusões, o estudo também mostra que que o álcool é um problema muito mais grave que o crack e outras substâncias ilícitas na mira do governo de Jair Bolsonaro.

É confusa a abordagem do tema pela mídia nos dias seguintes à publicação do Intercept, e a nota veiculada pela própria Fiocruz não ajuda, na minha avaliação, a munir a opinião pública de argumentos em defesa da qualidade do estudo, exceto, mais uma vez, pela chamada ao reconhecimento da validade, seriedade e, em última instância, superioridade do empreendimento científico. No entanto, de uma coisa não resta dúvida: a associação entre o engavetamento do estudo e o fato dele contradizer o discurso que embasa a visão do governo de Bolsonaro para a questão das drogas, visão esta que resulta na defesa da abstinência forçada – especialmente nas chamadas comunidades terapêuticas, a maioria com vínculos religiosos –; na criminalização do uso e na negativa a qualquer debate sobre regulamentação da produção; e na culpabilização dos usuários, em oposição às políticas de redução de danos e outras medidas de amparo a populações em situação de vulnerabilidade.

Fora do País, um outro imbróglio oferece mais alguns elementos para pensar a relação entre dados e a definição de diretrizes e políticas. Em coluna publicada no Estadão no dia 2 de junho, Daniel Martins de Barros chamou a atenção para a confusão criada pela declaração de um porta-voz da Organização Mundial da Saúde (OMS), de que o burnout teria sido incluído pela primeira vez na Classificação Internacional de Doenças (CID). A repercussão foi imediata, com manchetes ao redor do mundo destacando que o estresse profissional teria sido reconhecido pela primeira vez como doença, e alguns textos evidenciando as consequências práticas desse reconhecimento como, por exemplo, sobre as políticas de afastamento dos setores de recursos humanos. Mas a história não era bem essa, e a OMS se apressou em publicar nota dizendo que a síndrome já estava na edição anterior da CID, e que um maior detalhamento na nova versão a descreve como fenômeno ocupacional, e não condição médica, dentre outros esclarecimentos.

O episódio ilustra, primeiramente, como a necessidade da mídia “empacotar” a realidade na forma de notícias pode simplificar demais essa realidade, gerando compreensões equivocadas e, também, ofuscando coisas mais importantes mas, talvez, mais difíceis de serem reportadas. Mas, mais importante no contexto da discussão aqui proposta, ilustra também a importância de um discurso comum e de categorias bem definidas para a geração de estatísticas que possam subsidiar políticas públicas.

Em sua coluna sobre a CID, Daniel Martins de Barros conclui afirmando que tais conquistas só serão possíveis com mais esclarecimento, e não mais confusão. Infelizmente, confusão é o que mais temos testemunhado aqui no Brasil, incluindo os debates sobre o Censo e sobre o levantamento do uso de drogas executado pela Fiocruz.

Boas leituras, e até a semana que vem.

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