Fui só eu que senti um frio na barriga quando li, em manchete de O Globo, que “‘Vamos precisar deixar a Terra em 100 anos’, diz Stephen Hawking”? Entre aspas e transcrita desta forma, a afirmação parece uma sentença definitiva de que os filhos dos meus sobrinhos, quiçá os próprios, viverão até o dia de acenar adeus ao nosso pálido – e querido – ponto azul.

Aparentemente, não foi exatamente assim que Hawking expressou seu pensamento, em um novo documentário da BBC que é o motivo da notícia. O físico alertava, sobretudo, para a falta de cuidado que temos tido com a nossa vida na Terra, bem como para a situação preocupante de vivermos um momento histórico em que temos a tecnologia capaz de destruir o nosso planeta, mas não aquela que nos permitiria escapar dele.

Além disso, é importante sabermos, para superar o arrepio inicial na espinha, que: 1. reflexões sobre o mal que vimos causando ao Planeta – e à Humanidade – expressas em frases de efeito relacionadas ao fim da Terra e à necessidade de colonizarmos outros planetas têm sido um dos temas prioritários de Stephen Hawking há alguns meses; 2. Stephen Hawking a-d-o-r-a declarações polêmicas e frases de efeito; 3. os jornais também a-d-o-r-a-m declarações polêmicas e frases de efeito, além de amplificarem ainda mais seu impacto selecionando para as manchetes pequenos fragmentos daquilo que já é, necessariamente, um recorte da realidade (como exemplifica, inclusive, o título desta coluna!).

E é sobre isso que eu quero falar hoje: fragmentação, e reconstrução da realidade. A fragmentação é uma característica de qualquer produto midiático. A notícia é, por definição, factual e, necessariamente, “fotográfica”, limitada em termos de espaço e/ou tempo. Qualquer narrativa midiática é uma representação, uma reconstrução dos fatos feita a partir de escolhas, de um determinado ponto de vista, mais ou menos comprometido com a busca de objetividade e da tão falada imparcialidade. Mas não é, nunca, a “realidade”, e sim uma história sobre a realidade, mais ou menos bem contada. Isto não é bom, ou ruim. É assim, e cabe a nós buscar outros pedaços, outras histórias que nos permitam ir, progressivamente, construindo o nosso olhar e ajustando o foco.

Vejamos um outro exemplo. No domingo, dia 7 de maio, a Folha de S. Paulo publicou matéria sobre cuidados paliativos. Aparentemente, o texto fala sobre uma pesquisa realizada em quatro países – Estados Unidos, Japão, Itália e Brasil –, cujos resultados apontariam que “No fim da vida, brasileiro prioriza prolongar dias a sentir menos dor”, como destaca o título da reportagem. Mas, ao destrincharmos o texto, vemos que o estudo é apenas um gancho, uma “desculpa” para contar uma outra história e defender algumas hipóteses.

Os primeiros nove parágrafos – de 19 no total – nos apresentam um “personagem”: o artista plástico Sidney Amaral, de 43 anos, que, diagnosticado com um câncer incurável em janeiro deste ano, vive em casa sob cuidados paliativos, junto à mulher e à filha. Ficamos sabendo do cotidiano de Amaral, dos seus sentimentos, e do fato que se define como “agnóstico dentro de uma família de católicos e espíritas”. Os três parágrafos seguintes apresentam a pesquisa, dizendo que foi feita pela revista The Economist e por uma fundação, a Kaiser Foundation. Não há muito mais detalhes do que estes que reproduzo aqui – não conhecemos a metodologia, a motivação do estudo, a razão para a escolha dos países… Vemos que, entre os brasileiros, 50% julgam “extremamente importante” estender o máximo possível o fim da vida – valor que vai de 9 a 19% nos outros países – e 42% veem a morte sem “dor, desconforto ou estresse” como “muito importante”. E então temos a frase: “Para os pesquisadores, a forte religiosidade dos brasileiros influencia na concepção que têm sobre os cuidados que desejariam no fim.”.

Quem disse isso? Não sabemos. Podem ter sido os autores do estudo, ou o geriatra Douglas Crispim, que, na frase seguinte, diz que além da religiosidade também devemos considerar a falta de informação adequada sobre os cuidados paliativos. A matéria conclui que os dados da pesquisa corroboram essa afirmação, já que entre os entrevistados com Educação Superior a preocupação com uma morte confortável está mais disseminada. O “caos na saúde” e a falta de informação dos profissionais da área também entram no caldo…

Enfim… O que temos é uma pesquisa, da qual não sabemos muito, cujos resultados apontam que os brasileiros priorizam viver alguns dias a mais em relação a uma morte mais confortável (ou, como não conhecemos a metodologia, que metade de 1.200 brasileiros responderam achar muito importante viver esses dias a mais). Temos, sem que haja qualquer relação entre essas histórias, uma pessoa, aparentemente bem educada e declaradamente agnóstica, que optou por receber cuidados paliativos, por motivos que não são claramente abordados – e que podem não ter nada a ver com sua educação e crenças! E temos opiniões de especialistas sobre o que poderia favorecer ou desencorajar a opção por cuidados paliativos.

A história de que o brasileiro prefere estender seus últimos dias porque a religiosidade e o baixo nível educacional o levam a essa opção, talvez associados à má qualidade do atendimento em Saúde no País, é, em grande medida, uma criação do jornal.

Na minha opinião, este é um texto jornalístico mal executado. Mas não é só em reportagens mal resolvidas que temos a fragmentação e a reconstrução da realidade: elas são inerentes à prática jornalística, seja ela de boa ou má qualidade. Reitero, portanto, que cabe a nós buscar outras fontes de informação para, a partir delas e de reflexão sobre elas, chegar às nossas próprias conclusões. Neste caso, recomendo, por exemplo, o relatório publicado pela própria Kaiser Foundation e, também, o editorial da The Economist que nos mostra como a ação da revista está inserida em um movimento iniciado há dois anos em defesa da legalização do suicídio assistido.

Boas leituras, e boa semana.