Fosfoetanolamina: de quem é a culpa? Mariana Pezzo 7 de abril de 2017 Coluna Mídia e Ciência A esta altura, o assunto está “velho” e já foi comentado à exaustão. Não poderia, no entanto, deixar de compartilhar algumas reflexões sobre este que vejo como um caso-modelo para pensarmos a relevância da leitura crítica de mídia; da ampliação do acesso ao conhecimento e às práticas científicas e tecnológicas; e da atenção permanente que nós, profissionais da Comunicação, temos de ter ao papel da nossa prática. No último dia 31 de março, o Instituto do Câncer do Estado de São Paulo (Icesp) anunciou que interromperá a inclusão de novos pacientes no estudo clínico que vinha conduzindo sobre possíveis efeitos terapêuticos da fosfoetanolamina sobre o câncer. A interrupção, que acontece na segunda fase do estudo, se deu porque não houve resultados significativos de eficácia: de 59 pacientes avaliados, apenas um melhorou. Na primeira fase, apenas a segurança da substância havia sido verificada, junto a 10 pacientes. A segunda buscava verificar se havia chances dela funcionar. A terceira, que envolveria milhares de pessoas, testaria de fato a sua capacidade de tratamento do câncer, inclusive em comparação com outros medicamentos já existentes. Mais de um texto noticiando o anúncio do Icesp falou em possibilidade de termos o último capítulo da “novela” da fosfo, cujo marco inicial é situado na década de 1990 – quando as cápsulas, supostamente capazes de curar o câncer, começaram a ser distribuídas no Instituto de Química da USP em São Carlos. Essa distribuição, como muitos já devem saber, era feita sem que tivessem sido cumpridos os protocolos – científicos e éticos – indispensáveis em situações como esta. Também em mais de uma notícia, a história toda é tratada como “um dos episódios mais bizarros da ciência brasileira”. Penso, no entanto, que mais bizarro ainda é o episódio para o jornalismo de Ciência brasileiro. Não nego ou menosprezo, é claro, todos os erros científicos, institucionais e éticos que se sucederam desde o momento em que as pílulas começaram a ser distribuídas. No entanto, o que acontece daquele momento até agosto de 2015 me parece apenas o prefácio de uma história triste e assustadora que se inicia de fato no dia 17 de agosto de 2015, quando o G1 São Carlos publica a notícia intitulada “Pacientes pedem na Justiça que USP forneça cápsula de combate ao câncer”. Não fiz, ainda, o estudo sistemático desta história que um dia pretendo fazer; no entanto, de minha localização privilegiada, em São Carlos, e após algumas breves pesquisas, concluo que foi este o gatilho de um episódio, mais do que bizarro, também profundamente lamentável e, espero, didático, para a mídia nacional. Nada especial aconteceu naquele mês de agosto de 2015. A USP havia – tardiamente – impedido a produção e distribuição das cápsulas em junho de 2014. Liminares obrigando a Universidade a entregá-las e, também, decisões judiciais contrárias a essa obrigatoriedade, existiam já bem antes disso. Grupos online de pacientes – e um punhado de charlatães – também não surgiram naquele momento. O que houve foi apenas a matéria do G1 São Carlos, surgida não sei de onde, mas talvez da notícia publicada também no G1, mas de Santa Catarina, sobre a prisão, em junho daquele mesmo ano, de um morador da cidade de Pomerode que sintetizava e distribuía irregularmente a fosfoetanolamina. A tal matéria – com uma série de características extremamente problemáticas que se repetiram em muitas de suas sucessoras – foi sendo ecoada, primeiramente no próprio G1 São Carlos, depois na EPTV (emissora filiada à Rede Globo), até que, a partir de outubro ou novembro daquele ano, o assunto já não apenas dominava o noticiário nacional, mas também ocupava o Judiciário, a Presidência da República, o Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovação (ainda sem as Comunicações naquele momento…) e, mais importante, milhões de Reais e o tempo de pesquisadores e instituições de pesquisa que poderiam estar sendo empregados em outras frentes mais relevantes e/ou promissoras. Infelizmente, não creio que a história termine com o fim do estudo do Icesp. O compromisso com evidências científicas nunca foi definidor para este caso, e não vejo porque passaria a ser agora. Argumentos – se é que assim podem ser chamados… – questionando a qualidade da substância utilizada no estudo, a forma de administração, dentre outros, já proliferaram nos últimos sete dias. Porém, acredito que possamos aprender muitas coisas com tudo o que aconteceu e, dentre elas, a não amplificarmos falas como estas. Eu vejo sim culpa da mídia pela existência da novela da fosfo. Culpa por aquela primeira matéria e, sobretudo, por sua reverberação. Sei o quão passível de críticas e debate é esta minha compreensão. Entendo, no entanto, que é inquestionável a necessidade de refletirmos sobre as responsabilidades da mídia. Não que não tenham existido textos esclarecedores, sobretudo da relevância dos testes clínicos e das suas diferentes fases. Mas houve também, dentre outros problemas, o palco para infindáveis relatos de cura e, pior, recomendações médicas e/ou análises científicas de personagens que teriam, sim, legitimidade para se pronunciar sobre, por exemplo, seu direito à tentativa de tratamento ou sua prerrogativa de decidir sobre a própria vida, mas não sobre as características físico-químicas da fosfoetanolamina utilizada nos testes ou sobre o melhor horário para administração das doses. Houve o tratamento da substância por um nome sonoro que, simbolicamente, apenas reforça a visão da fosfoetanolamina como cura milagrosa negada à população por diferentes poderes malignos. E houve, inclusive, uma relativa ausência de discussão justamente sobre esses “poderes malignos”. O blog Café na Bancada, em texto publicado após o anúncio do Icesp, registra a expectativa de que o caso da fosfo sirva para que a população entenda “como funciona o método científico e o teste clínico”. Mas, até o momento, deixamos de discutir muito mais do que o método e a prática da Ciência. Precisamos falar também – e cada vez mais – dos interesses da Ciência, das suas relações com a indústria farmacêutica – e com outros atores econômicos, político e sociais – , de doenças negligenciadas, de hipóteses que não são confirmadas, pesquisas que fracassam, dentre uma série de outros assuntos que ainda falhamos em comunicar. Precisamos fazer isso para que a novela da fosfoetanolamina, com este ou outro nome, não volte a se repetir. *** Esta semana, se eu não tivesse escolhido a fosfo, teria falado de óleo de coco, ou voltado à história da carne. De qualquer forma, teríamos permanecido em temas diretamente relacionados à Saúde. Assim, depois do textão, a breve dica de leitura de hoje é a última coluna de Dráuzio Varella na Folha de S. Paulo, justamente sobre a cobertura da operação “Carne Fraca”. Sua conclusão poderia ser a minha para esta coluna: “A abordagem de um tema dessa importância pelos meios de comunicação de massa exige responsabilidade e análise criteriosa das possíveis consequências. Não é tarefa para principiantes.”. Boa leitura, e boa semana.