Sem pílula, sem milagre, com Ciência Mariana Pezzo 23 de outubro de 2019 Coluna Mídia e Ciência Sucesso de terapia contra o câncer inédita no Brasil reforça relevância da pesquisa nacional, mas também a tendência ao sensacionalismo na cobertura de Saúde Se você frequenta ao menos uma rede social, muito provavelmente topou em algum momento das últimas semanas com a foto de Vamberto Luiz de Castro, o paciente que tem grandes chances de ter se livrado da sentença de um câncer terminal graças à Ciência brasileira. Mesmo se você nunca fez parte, ou está em fase de desintoxicação desse mundo digital, ainda precisa realmente bastante desconectado para não saber de nada, já que, segundo a principal financiadora da pesquisa em questão – a Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (Fapesp) –, foram quase 800 as notícias publicadas no Brasil sobre o avanço. Eu precisei ver muitas fotos de Vamberto pulando das telas de diferentes computadores e do celular até entender a real relevância daquilo que estava sendo noticiado. Primeiramente, a discrepância entre essas fotos e a falta de tempo para clicar nos links que iam se sucedendo nas minhas timelines me fez até mesmo desconfiar de fake news ou, no mínimo, sensacionalismo, já que o paciente magro e descabelado deitado em uma maca das primeiras imagens não parecia o mesmo senhor alinhado e penteadíssimo que aparece em fotos mais recentes. Depois de me dedicar à leitura, também foi surpresa saber que a descoberta principal não é de um novo tratamento para o câncer, mas sim de um modo novo de reproduzir terapia já empregada em outros países, que reduz o custo de mais de $ 1 milhão para $ 150 mil Reais, tornando realista a previsão de um dia vê-la no SUS. A surpresa veio, em grande medida, do sensacionalismo de fato presente em algumas manchetes, como na do Correio Braziliense, que registra: “Cura de brasileiro cria nova esperança contra o câncer terminal”. Várias outras, mais cuidadosas, tentam não falar em cura, mas em algum momento não conseguem se conter e registram, no mínimo, que o caso de câncer foi levado à remissão, o que não é inteiramente verdade, já que ainda faltam alguns exames. São exemplares, na minha avaliação, os textos publicados na Agência Fapesp e na Folha de S. Paulo, que deixam bem claro, entre outros pontos, que o tratamento é destinado a um tipo específico de câncer, que os efeitos colaterais no momento de sua aplicação são muito intensos – e, inclusive, já levaram outros pacientes à morte – e, principalmente, que ainda são vários os passos necessários até o seu uso mais corriqueiro. Tudo isso, sem diminuir a importância da conquista. Em relação a esses próximos passos, escorrega o Estadão. Em uma primeira matéria, publicada em 10 de outubro, o jornal afirma que há a expectativa de, nos próximos seis meses, testar o tratamento em “pelo menos outros 10 pacientes”. A forma como a história é contada nos leva a crer que em brevíssimo intervalo o acesso à nova terapia será coisa de rotina, já que o primeiro paciente teria entrado em remissão após 20 dias, já há mais três pacientes em preparação para o tratamento, pelo menos outros sete serão atendidos em seis meses e, assim, espera-se que a técnica, “no futuro, esteja disponível gratuitamente no Sistema Único de Saúde”. Com essa construção feita pelo Estado, esse futuro parece bem próximo; mas a realidade pode não ser bem assim. O próprio Coordenador do CTC – Centro de Terapia Celular, responsável pela pesquisa –, em entrevista no dia 16 ao mesmo Estadão, afirma que seu objetivo de envolver mais 10 pessoas nos próximos seis meses pode ser um pouco otimista. Aliás, embora seja um movimento sutil, a minha impressão é que essa entrevista foi formulada e editada para forçar a ideia de que o único obstáculo para o tratamento estar nas prateleiras amanhã seria a burocracia do ambiente regulatório brasileiro para aprovação de novos medicamentos e terapias. Não é isso que o pesquisador diz, e não me parece ser esta a questão mais importante. Como – aí sim – diz o pesquisador, mais apoio e mais investimento sem dúvida permitiriam diminuir o tempo para cumprimento de novas etapas e, estas sendo bem-sucedidas, um ambiente regulatório mais favorável também aceleraria o processo, mas falar isso não é o mesmo que sugerir que o principal obstáculo é a burocracia existente no País. Muito tempo, em Ciência, frequentemente não é tempo demais, mas apenas o tempo necessário. Todas as matérias que eu li destacam como os resultados alcançados só foram possíveis devido ao apoio recebido pelo CTC, ressaltando assim a relevância do financiamento da C&T, como se seguissem uma cartilha sobre como falar de Ciência em tempos de crise. O que elas não detalham é o fato do CTC ser um Cepid – Centro de Pesquisa, Inovação e Difusão –, modelo de centro de excelência da Fapesp que, dentre outras características, prevê financiamento por longo prazo, com um volume de recursos muito superior ao normalmente recebido por outros e compromisso não exclusivamente com a produção de conhecimento, mas também com a sua chegada a diferentes segmentos sociais. Além disso, o projeto recebeu recursos importantes de outras fontes, e todos esses aspectos evidenciam que, para chegarmos ao que vemos – a possibilidade de acesso no sistema público de Saúde a uma terapia inovadora contra o câncer, que traz com elas grandes chances de cura –, há um esforço invisível de anos, em que não só alguns dos cientistas que participaram da pesquisa foram formados, mas também foi sendo cumprida uma série de etapas na construção de conhecimentos, foram sendo desvendados “segredos” aqui e acolá, superados desafios e obstáculos para se chegar ao paciente que, antes condenado à morte em alguns meses, hoje está fora do hospital. Para que venham muitos outros, é indispensável que o processo não seja interrompido. E, se no caso dos Cepids, isto está em certa medida garantido, o mesmo não é verdade para a imensa maioria dos demais projetos de pesquisa em nosso país. Mídia e Ciência também disponível em podcast e vídeo