Relação entre passado, presente e futuro definirá o que será da indignação pela queima do Museu Nacional

Desde o trágico domingo, dia 2 de setembro, não há quem não tenha ouvido que, aos 200 anos, o Museu Nacional era a mais antiga instituição científica brasileira, fundada por D. João 6o, e que abrigava cerca de 20 milhões de itens, a maior parte agora reduzida a cinzas. Muitos também sabemos que estavam lá o meteorito do Bendegó, o maior já encontrado em solo brasileiro; o crânio de Luzia, ser humano mais antigo das Américas; e o esqueleto de alguns dinossauros, dentre eles o primeiro de grande porte montado no País. Essas informações foram repetidas à exaustão, na TV, no jornalismo impresso, nas redes sociais, nas conversas entre amigos e, provavelmente, até mesmo entre desconhecidos – embora, na quarta-feira, quando escrevo a coluna, outros assuntos já comecem a tomar o lugar do fogo na Quinta da Boa Vista.

O olhar para o passado, para a história do próprio prédio que abrigava o Museu, para a antiguidade inscrita nos itens do seu acervo e, também, para as memórias das pessoas que visitavam o Museu, ou lá trabalhavam, dominou o noticiário sobre o incêndio. Mais raro foi o olhar para o futuro, para todo o conhecimento que não será produzido porque o Museu queimou. Em um dos primeiros textos publicados, Reinaldo José Lopes, na Folha de S. Paulo, tratou da questão, citando como exemplo os holótipos, exemplares de plantas e animais utilizados na classificação de novas espécies. O jornalista voltou ao tema em matéria na qual registrou a perda de material arqueológico da região de Santarém, no Pará, cujo estudo vinha evidenciando a existência de sociedades indígenas muito mais complexas do que se imaginava na Amazônia pré-colonização. No entanto, a coleção de etnologia indígena, incluindo os registros sonoros e escritos de povos e línguas que já não existem mais, não recebeu a mesma atenção que o Bendegó, Luzia e os dinossauros, assim como pouco se falou dos quase 100 docentes e mais de 500 estudantes de mestrado e doutorado que agora ficam sem pesquisa, e sem lar.

Essa dialética entre passado e futuro perpassa outros aspectos do discurso e das reflexões sobre o incêndio no Museu. Quando o fogo arde, torna-se onipresente a alcunha de “tragédia anunciada” e, ao mesmo tempo, o jogo de empurra entre as autoridades responsáveis. Todo o mundo já sabia que a tragédia podia acontecer, e cada um atribui a causa àquilo que melhor lhe convém, especialmente por causa do contexto eleitoral em que vivemos. Metáforas não faltam, mas algo me parece consenso entre as inúmeras vozes que se pronunciaram sobre a tragédia: o incêndio no Museu Nacional é o símbolo perfeito para um país que não cuida da sua história e da sua memória. Resta, no entanto, entender por quê.

O filósofo alemão Theodor Adorno abordou a questão da memória afirmando, na década de 1960, que a não repetição de Auschwitz dependia do reconhecimento das forças sociais que permitiram a sua existência e que ainda estavam (estão?) presentes, podendo levar de novo à barbárie. Em seu “O que significa elaborar o passado”, Adorno diz que: “No fundo, tudo dependerá do modo pelo qual o passado será referido no presente; se permaneceremos no simples remorso ou se resistiremos ao horror com base na força de compreender até mesmo o incompreensível.”. Esquecer serve aos poderosos, nos deixando como única opção a adaptação ao existente e a consequente possibilidade de repetição do passado que se pretendia esquecer.

A incapacidade de aprender com o passado permitiu o incêndio no Museu Nacional, e a perda do Museu Nacional cria novos obstáculos ao esforço de elaboração de uma história de desigualdade e injustiça para a construção de um futuro que seja diferente. Mas obstáculos devem ser superados e, se quisermos um país diferente, é preciso resistir além de manifestações indignadas nas redes sociais, da “gritaria”, como registra o antropólogo Eduardo Viveiros de Castro.

Nas tentativas de atribuir sempre ao outro a causa do fogo no Museu Nacional e nos outros museus que arderam antes dele, sobrou para “os cidadãos” e “a sociedade civil”, por nunca terem se importado suficientemente. Esta culpa distribuída não existe, é retórica que dificulta a identificação dos verdadeiros responsáveis, mas há, sim, coisas que cada um de nós pode fazer em prol dos museus brasileiros. Dentre elas, uma das principais é a cobrança e fiscalização das promessas vazias feitas no calor da hora – e, nunca é demais lembrar, das eleições –, junto à cobrança também de que o assunto não caia no esquecimento, inclusive da mídia.

O jornalista Bruno Boghossian registrou que a imagem do meteorito do Bendegó sobre as cinzas logo na entrada do Museu Nacional pode dar a impressão de que ele ali caiu destruindo tudo ao seu redor. Que, além de marca deste passado que não devemos esquecer, o Bendegó, com seus mais de de quatro bilhões de anos (130 deles no Museu Nacional), seja símbolo de resistência, de resiliência, e possa ser pedra fundamental não só da reconstrução do Paço de São Cristovão, mas também de um projeto coletivo de país, que emerja da visão crítica do passado – de uma ideia que o fogo não devora, como colocam a Academia Brasileira de Ciências (ABC), a Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC) e dezenas de outras entidades científicas.

Boas leituras, e até a próxima semana!

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