crispoquê? Mariana Pezzo 28 de março de 2019 Coluna Mídia e Ciência Imprensa brasileira não permite o acompanhamento necessário dos debates sobre edição genética Quando o pesquisador chinês He Jiankui escandalizou o mundo em novembro do ano passado ao anunciar o nascimento de duas meninas gêmeas a partir de embriões que teriam passado por edição genética usando a técnica chamada de CRISPR, não faltaram manchetes bombásticas. O tempo foi passando e a notícia foi ficando velha, perdendo interesse, ressurgindo apenas quando voltava a ganhar contornos espetaculares, como o desaparecimento (temporário) de Jiankui e a possibilidade de a alteração anunciada afetar o cérebro e o desenvolvimento cognitivo das meninas, além de torná-las imune ao HIV, que era o objetivo inicial. No começo deste mês de março, quando esquentou o debate na comunidade científica internacional sobre como lidar com a CRISPR a partir de agora, o assunto praticamente não apareceu na imprensa brasileira. Foi no dia 13 de março que 18 pesquisadores, de 7 países, publicaram na Nature a reivindicação de uma moratória global para todos os usos clínicos da edição de genoma na linha germinal humana, ou seja, de edição genética de espermatozóides, óvulos ou embriões com o objetivo de produzir bebês. Entre os autores dessa reivindicação estão cientistas que ajudaram a criar a CRISPR. O texto alega que a moratória traria o tempo necessário tanto para termos certeza da segurança e da eficácia da técnica, quanto para que a sociedade construa um consenso amplo sobre a pertinência da sua aplicação. Dentre os riscos, por exemplo, já se sabe que a CRISPR nem sempre funciona como devia, podendo provocar danos extensos no genoma, e, também, que um mesmo gene silenciado pode prevenir uma doença e aumentar a vulnerabilidade a outras. Os pesquisadores que assinam o manifesto na Nature também destacam a importância do tempo para desenvolver uma estrutura global de governança da aplicação clínica da CRISPR, prevendo mecanismos para garantir a transparência e, assim, a possibilidade de acompanhamento e controle dos estudos em andamento. Governança internacional, transparência e possibilidade de acompanhamento e controle também são os pontos principais nas recomendações de um painel de especialistas vinculado à Organização Mundial da Saúde (OMS), publicadas alguns dias depois, em 19 de março. Estes evitam falar em moratória, mas registram que seria “irresponsável” continuar com aplicações clínicas da CRISPR neste momento. A manifestação da OMS esteve quase totalmente ausente da imprensa brasileira. O pedido de moratória publicado na Nature teve notícias na Folha de S. Paulo e no Estado de Minas, mas em uma mesma tradução da agência France Presse (AFP) que, embora informe trechos relevantes da solicitação, é confusa e, principalmente, não ajuda o leitor a participar das reflexões éticas imprescindíveis neste caso. Além dos riscos já comentados, há toda uma discussão sobre o surgimento de “bebês projetados” e, além disso, a perspectiva de agravamento de desigualdades sociais e econômicas, como alerta o Outras Palavras. Como nos lembra o mesmo texto de Outras Palavras, o dilema sobre quem terá acesso aos resultados das pesquisas em Genética já está posto mesmo antes da CRISPR, uma vez que cresce, por exemplo, o uso de testes genéticos no processo de fertilização in vitro, para evitar a implantação de embriões portadores de doenças hereditárias ou, até mesmo, para escolher o sexo do futuro bebê. Por isso, precisamos nos apressar, enquanto sociedade, no diálogo em busca de consensos sobre o futuro que desejamos, já que o conhecimento científico e a tecnologia andaram mais rapidamente que os debates éticos, o estabelecimento de políticas públicas e dessa capacidade da comunidade internacional estabelecer os limites para esse desenvolvimento. Ainda em fevereiro, novamente na Nature, um pesquisador avaliava que o escândalo chinês não atrapalharia a continuidade das pesquisas em CRISPR, já que o ciclo das notícias é tão curto que logo as pessoas não mais lembrariam dele. Cabe à mídia refletir sobre as consequências da sua prática e, principalmente, cabe a nós lutar contra esse esquecimento, para que façamos, como sociedade, uma decisão informada, e não apavorada diante do desconhecido ou irresponsável diante da ignorância sobre as implicações dessa decisão. Boas leituras, reflexões, e até a próxima semana. Mídia e Ciência também disponível em podcast e vídeo