As Humanidades contra-atacam Mariana Pezzo 12 de setembro de 2019 Coluna Mídia e Ciência Exemplos do papel das Ciências Humanas e Sociais no desenvolvimento tecnológico ajudam a delimitar com mais precisão a abrangência da crise É quase impossível não falar sobre a desgraça da Ciência brasileira, em um comentário semanal das principais notícias na área. Os jornais, programas televisivos e redes sociais têm falado de Ciência e Tecnologia muito além do que é comum, mas, infelizmente, pelos piores motivos e, já podemos até dizer, por causa da iminência da destruição do sistema de C&T em nosso país. Até mesmo as boas notícias nos levam de volta à crise. No último domingo, na Folha de S. Paulo, Adriano Caliman, professor da Universidade Federal de Rio Grande do Norte, comenta os resultados da última edição do Leiden Ranking, ranking de produção científica feito pela universidade holandesa de Leiden. Caliman destaca que, no período de 2009 a 2017, cresceu o número de artigos científicos brasileiros entre os mais citados no mundo e, talvez mais importante que isso, diminuiu a desigualdade entre a produção do Sudeste e de outras regiões do País. No entanto, estes são reflexos dos investimentos realizados no período imediatamente anterior, o que significa que os indicadores daqui a quatro anos muito provavelmente já serão bem diferentes. Investimentos em pesquisa levam, em média, de cinco a seis anos para ser possível medir seus impactos em rankings de publicações e/ou citações, como registram Sabine Righetti e Estevão Gamba na mesma edição da Folha, em artigo que critica o modo como o Governo Federal noticiou um outro estudo, realizado pela empresa Clarivate Analytics sob encomenda da Capes. Herton Escobar também falou dos resultados desse levantamento, no Jornal da USP, para registrar o temor de que os cortes no financiamento interrompam de forma irreversível a trajetória de crescimento e amadurecimento da produção científica brasileira. Mas um outro dado destacado pelo jornalista me lembrou de um aspecto da crise que anda meio esquecido: a desvalorização e, em alguns casos, o verdadeiro ataque às Ciências Humanas e Sociais. Isto porque, segundo o Jornal da USP, o estudo da Clarivate indica que as áreas do conhecimento em que a Ciência produzida no Brasil tem maiores índices de impacto internacional são, justamente, as Humanidades e as Ciências Sociais Aplicadas. Rankings são sempre questionáveis – e questionados –, mas diferentes indicadores sempre nos ajudam a identificar tendências e formular diagnósticos que podem ajudar a planejar o futuro. Soma-se a isso o fato de que, para além da questão da produtividade da área, são cada vez mais frequentes os exemplos da relevância das Ciências Humanas para a nossa existência, inclusive em campos muitas vezes colocados em oposição a elas, quando qualificados como mais interessantes economicamente, produtivos e úteis. Um texto publicado na revista de tecnologia Wired no fim de agosto, por exemplo, apresenta experiências de ensino de Ética a futuros programadores, em cursos de Computação de instituições de prestígio, como MIT, Carnegie Mellon e Stanford, todas nos Estados Unidos. Em algumas delas, destaca o artigo, são usadas obras de ficção científica, no esforço de promover exercícios de predição e evidenciar as grandes questões humanas, atuais e futuras. O artigo na Wired situa que este é um debate antigo – como ensinar Ética a engenheiros –, que ressurge no debate sobre a moralidade das chamadas “big techs” – Facebook, Google, Amazon –, sobre os riscos relacionados à disponibilização de dados privados e à tendência de algoritmos reproduzirem os vieses e preconceitos humanos, dentre outros temas associados. Neste contexto, as universidades buscam fazer com que os estudantes pensem sobre os produtos que um dia irão construir e vender, que compreendam a natureza e os riscos do trabalho na área e que, como profissionais, sejam capazes de identificar problemas éticos e propor soluções. Para tanto, conclui o texto, são imprescindíveis as Humanidades, na construção de um modo de pensar mais abrangente do que a “mentalidade do código, orientada a objetivos”. Um outro texto, um pouco mais antigo, publicado na Quanta – também dedicada às Ciências Exatas, Naturais e à Tecnologia –, apresenta a proposta do cientista social Iyad Rahwan de uma nova disciplina de pesquisa, o “comportamento de máquinas”, uma espécie de “antropologia” da inteligência artificial. Rahwan – hoje Diretor do Centro para Humanos e Máquinas do Instituto Max Planck para o Desenvolvimento Humano –afirma que os algoritmos se tornam cada vez mais complexos, dificultando prever a sua tomada de decisão e, assim, exigindo a observação das máquinas em sua interação com outras máquinas, o ambiente e as pessoas. Estes são apenas exemplos, e outros não faltam. Eles nos ajudam a compor o diagnóstico sobre o qual eu falava antes, e alertam que, mais do que o gráfico de produção dos acadêmicos de Ciências Humanas e Sociais, ou mesmo o desenvolvimento econômico do País – se isto for o mais importante para você –, o que deve entrar em declínio se não houver mudança no modo como o atual governo trata as ciências brasileiras é a nossa existência e um outro desenvolvimento, o humano. Mídia e Ciência também disponível em podcast e vídeo