Divulgação de estudo publicado na Nature peca por excesso metafórico

Desde o início do mês, a chamada para a notícia de que cientistas encontraram a salvação para o gato de Schrödinger vinha, literalmente, saltando aos meus olhos. A formulação inusitada e o fato das fontes não serem as mais convencionais me mantiveram longe do texto completo, até que, nesta semana, a curiosidade se tornou maior que a preguiça e decidi investigar.

Para quem está sendo apresentado agora ao gato de Schrödinger, trata-se de um experimento mental formulado pelo físico austríaco Erwin Schrödinger, para ilustrar o conceito de superposição (existência de dois estados energéticos de um mesmo átomo simultaneamente) e a noção de imprevisibilidade, que são centrais na Física Quântica. No experimento, um gato – imaginário – é fechado em uma caixa junto com um vidro de veneno que será quebrado se houver decaimento de um átomo da substância radioativa também colocada na caixa, causando assim a morte do gato. A superposição implica que, até que haja a observação do fenômeno – ou seja, que alguém abra a caixa –, o gato estará simultaneamente morto e vivo. A abertura da caixa provocará a definição – aleatória – de um ou outro estado, ou seja, resultará em um gato morto ou em um gato vivo. Em outras palavras – importantes para compreendermos o que será contado adiante –, a observação provoca um salto quântico, que é a mudança discreta (ou seja, não contínua) e aleatória entre dois estados da matéria (o gato, no caso).

Acontece que um experimento realizado por pesquisadores da Universidade de Yale (EUA) e publicado na revista Nature no dia 3 de junho permitiu, de forma muito engenhosa, a identificação de sinais de que um salto quântico ocorreria e, mais do que isso, a reversão desse salto. Para relatar a conquista ao público de não especialistas, os responsáveis pela descoberta usaram algumas metáforas, dentre elas, por exemplo, a de um vulcão, cuja próxima erupção não pode ser precisamente determinada, mas que envia sinais indicando ser prudente esvaziar a área ao seu redor nos próximos dias. No entanto, a relativa fama do gato de Schrödinger fez com que a maior parte dos veículos que noticiaram o feito recorresse ao alarde sobre a possibilidade de sobrevivência do mal fadado animal, o que, na minha opinião, causou muito mais confusão do que divulgação do conhecimento.

A Mecânica Quântica – junto com a Teoria da Relatividade Geral – forma a base de todo o conhecimento que temos sobre o mundo físico. No entanto, elas não são compatíveis: a Relatividade nos ajuda a compreender o universo do muito grande (massivo) – planetas, estrelas, buracos negros e afins –, enquanto a Quântica é a lente através da qual olhamos para o muito pequeno: átomos, elétrons, …, e não gatos!

Em uma de suas colunas mais recentes, sobre o fim da série “The Big Bang Theory”, o jornalista de Ciência Reinaldo José Lopes reflete sobre o papel da série na aproximação entre o universo científico e a cultura pop e, ao fazê-lo, cita como exemplo justamente o fato da metáfora do gato de Schrödinger estampar camisetas e ser “usada para explicar namoros intermitentes”. Na área da divulgação científica, muitas vezes falamos em promoção da cultura científica, o que exige justamente essa reinserção da Ciência na cultura. As metáforas são um caminho importante para isso; no entanto, oferecem grande risco de desinformação quando os seus limites não são claramente apontados, desinformação esta que pode facilitar o caminho para usos indevidos e mal intencionados de conceitos científicos, para as pseudociências, como é o caso da “cura quântica” e outros engodos quânticos cada vez mais célebres.

Por isso, me parecem importantes textos que buscam oferecer várias “camadas” de entendimento, dos quais parte dos leitores podem não compreender alguns parágrafos mais detalhados, mas aproveitam trechos introdutórios mesmo que eles se atenham aos conceitos científicos, sem recorrer à linguagem metafórica. No caso atual, o texto publicado pela própria Universidade de Yale, embora fale do gato, é um bom exemplo do que estou reivindicando, mas o melhor, na minha opinião, é o publicado na Quanta Magazine.

O texto da Quanta começa com três parágrafos que resumem o achado para o leitor mais apressado – e, talvez, menos curioso. Os parágrafos seguintes aprofundam o histórico do desenvolvimento da Mecânica Quântica, falam do desconforto de Schrödinger e Einstein com a aleatoriedade, para chegar até tentativas anteriores de observar saltos quânticos e, somente no 11º parágrafo, ao abordar os obstáculos encontrados, fala do gato. Os 12 parágrafos seguintes são dedicados à descrição do experimento de Yale, em explicações que vão ficando progressivamente mais detalhadas, para chegar nas implicações dos resultados encontrados, inclusive para a Teoria Quântica, e em possíveis aplicações futuras. No entanto, no 30º e último parágrafo, o autor destaca que o real valor do estudo não está em possíveis benefícios práticos, mas no que aprendemos sobre o funcionamento do mundo quântico.

É tentador emergir em devaneios ao ler a frase da Quanta dizendo que “a ausência de um evento pode trazer tanta informação quanto a sua presença”. No entanto, a construção do texto faz com que, neste ponto da leitura, já consigamos entender que o o assunto é a ausência ou presença de um determinado salto quântico, e mais nada. Já sabemos, também, que um salto quântico é a passagem de um átomo de um para outro estado energético, e não algo esotérico com implicações no destino do leitor, da humanidade, do Universo – ou dos gatos, que não o de Schrödinger. E, neste caso, menos é mais: saber delimitar os fenômenos específicos em questão é essencial para entendermos algo do que está sendo relatado, mesmo que apenas o suficiente para nos sentirmos inspirados a querer saber mais.

Boa leitura, e até a semana que vem, no último episódio desta temporada de Mídia e Ciência.

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