Decisão do britânico The Guardian de usar o termo “emergência climática” é compromisso com função pública da mídia

“Que há em um nome? O que chamamos de rosa, com outro nome, teria igual perfume.”

A citação célebre de Julieta angustiada com o Montecchio no nome de Romeu é um alerta de quanto há sob a superfície das palavras, já que, como todos sabemos, é trágica a consequência deste nome para a filha dos Capuleto. As reflexões suscitadas pela passagem do clássico shakespeariano servem bem à análise da recomendação recente do também britânico The Guardian de que seus jornalistas prefiram “emergência climática” a “mudanças climáticas”, dentre outras mudanças sugeridas no discurso sobre o aquecimento global e sua origem antrópica.

O The Guardian é considerado uma referência mundial na cobertura da crise climática. Segundo a publicação, os ajustes na linguagem utilizada têm o objetivo de descrever com mais acurácia a crise, sendo cientificamente preciso e, ao mesmo tempo, comunicando claramente ao público leitor o que o jornal chama de “catástrofe para a Humanidade”. Uma outra decisão do The Guardian ajuda a evidenciar a dimensão simbólica dos fatos que uma publicação jornalística seleciona para destacar, e da linguagem que utiliza para falar sobre eles. O jornal já vinha incluindo desde o começo de abril em sua previsão meteorológica os níveis de CO2 na atmosfera, como um lembrete diário de que é preciso agir já para combater as mudanças climáticas.

É comum que a qualidade de produções jornalísticas seja avaliada com base em critérios ditos de objetividade ou neutralidade, em referências de perfeição que advogam o relato apenas dos fatos, e de todos os fatos relacionados a um determinado acontecimento, como se fosse possível esse retrato fiel da realidade. A decisão tornada pública do The Guardian mostra como é ingênua essa visão, ao evidenciar os efeitos que o uso de palavras distintas para designar um mesmo “fato” pode ter na percepção daquilo que é relatado.

Um outro debate suscitado pela cobertura midiática das questões climáticas diz respeito à falácia de uma suposta imparcialidade a ser alcançada pela garantia de espaço ao “outro lado”, neste caso específico representado pelos céticos – ou, como agora prefere nomeá-los o The Guardian, pelos negacionistas das mudanças climáticas. O Columbia Journalism Review – uma das principais publicações de crítica de mídia, mantida pela Columbia Journalism School – aponta esta como uma das principais falhas da mídia dos Estados Unidos na cobertura do tema: tratar uma matéria de Ciência como se fosse uma história de Política, uma desavença entre dois pontos de vista igualmente válidos. Não é. Eu, pessoalmente, inclusive levo esta crítica mais além, por acreditar que a estrutura “um lado” x “outro lado” é um jeito preguiçoso de evitar a necessidade de fazer análises mais compreensivas de qualquer tema, inclusive os políticos.

Embora não tenha encontrado muita repercussão pública aqui no Brasil, a decisão do The Guardian não foi recebida sem controvérsias, dentre as quais destaca-se a afirmação de que os termos adotados seriam demasiadamente carregados de juízo de valor e, assim, menos científicos. Oras, como defendem quase todos os especialistas consultados pelo Science Media Centre – site que busca apoiar jornalistas na cobertura de assuntos relacionados à Ciência –, esta não é uma questão exclusivamente científica: emergências, normalmente, não são “descobertas” pela Ciência, mas sim declaradas politicamente para que se busque reduzir riscos, certamente com base no conhecimento científico, mas não só por causa dele. As pessoas consultadas também defendem que estamos na iminência de uma catástrofe, e que a linguagem correta pode ajudar um maior número de pessoas a entender os desafios postos e, talvez, salvar o Planeta no pouco tempo que nos resta para fazê-lo.

Alberto Dines, nossa referência nacional em crítica de mídia, abordou o papel da imprensa no combate às mudanças climáticas já em 2009, em editorial do Observatório da Imprensa. Alertando para o fato de que emergências – enchentes e secas – em diferentes lugares do mundo, aparentemente isoladas, seriam sintomas de um mesmo fenômeno, questionou: “E quem será capaz de costurar essas dezenas de acidentes climáticos? Qual o segmento da sociedade humana treinado para contextualizar e dar sentido aos fragmentos da pauta diária?”. A mídia.

A Ciência – ou, mais concretamente, a comunidade científica – tem uma história de dificuldade de comunicação com o público, ao menos nas últimas décadas, quase um século. Seja para compartilhar evidências científicas sobre temas relevantes socialmente ou angariar apoio público às atividades de pesquisa, o que vemos é, no máximo, a convicção de que essa comunicação é importante e tentativas – ainda esporádicas e isoladas – de praticá-la, restando um longo caminho pela frente até podermos falar em um esforço bem sucedido. Com isso, não quero dizer que esse esforço seja despropositado ou inútil; no entanto, não tenho dúvidas de que precisa ser menos pretensioso, autorreferente ou autossuficiente. Gostando ou não, os meios de comunicação e, particularmente, veículos jornalísticos, em grande medida determinam – ou, no mínimo, impactam com força – a forma como vemos o mundo, e conferem sentidos a fatos, incluindo os científicos. Assim, me parece fundamental que cientistas e jornalistas dialoguem de fato, para que os profissionais da Comunicação possam abordar com correção e precisão o conhecimento científico, mas, também, inscrevê-lo em um quadro mais abrangente que diz respeito à nossa vida cotidiana neste planeta que esquenta, e às ações para que ela possa continuar existindo no futuro.

Boas leituras!

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