Debate sobre a apropriação de estudos genéticos pelo racismo nos EUA permite olhar para as relações entre Ciência e Sociedade

Confesso que tentei, para esta edição de Mídia e Ciência, desviar um pouco o curso das últimas semanas, em que sempre chegamos, por uma ou outra via, ao atual momento político brasileiro. Mas, às vésperas do segundo turno das eleições mais dramáticas que eu já vivi – e que, certamente, também podem ser incluídas entre as mais dramáticas do País –, acabei fracassando neste intuito. Faço, no entanto, um preâmbulo relativamente extenso falando de Genética e racismo e, a partir daí, das relações entre Ciência, Poder e Sociedade, para só então chegar aos riscos que estamos correndo de ver essas relações se deteriorarem ao pior estado possível, que talvez não seja o abandono e a desvalorização do conhecimento científico, mas sim o seu uso para legitimar o autoritarismo, o preconceito, a discriminação e a violência.

O jornal O Globo publicou recentemente matérias sobre como a apropriação de pesquisas genéticas por movimentos racistas nos Estados Unidos tem preocupado os pesquisadores e foi tema de conversas na reunião da Sociedade Americana de Genética, realizada recentemente. Um dos textos é a tradução de matéria originalmente publicada no The New York Times, que fala sobretudo de um estudo sobre um traço genético que, supostamente, é mais comum em populações de origem caucasiana: a capacidade de digerir leite. A notícia relata como essa suposta diferença tem sido explorada por supremacistas brancos – que se fotografam tomando litros de leite para passar a mensagem de que aqueles que não podem fazê-lo devem ir embora dos EUA – e registra as preocupações dos geneticistas não só com esse mal uso, mas com a extensão dessas conclusões a outras áreas como, por exemplo, a inteligência de diferentes indivíduos. O outro texto é uma repercussão do tema junto a especialistas brasileiros.

O Globo, no entanto, recorta apenas um pedaço de um conjunto de outros textos que foram publicados no NYT. Neles, um aspecto relativamente negligenciado pelo jornal brasileiro tem bastante destaque: o encorajamento dos pesquisadores para que se envolvam no debate público relacionado a questões como raça e ancestralidade e a relevância de que as pessoas disponham, a partir desse debate, de ferramentas para entender os processos evolutivos que resultaram na diversidade das populações humanas, processos estes que, por exemplo, desautorizam completamente a ideia de “pureza racial”. Outro ponto importante é a dificuldade apontada pelos pesquisadores para estabelecer o diálogo entre um conhecimento científico que não pode oferecer respostas definitivas, que lida com dúvidas, nuances e imprecisões, e um público que, segundo eles, busca o “sim” e o “não” categóricos.

Mas, mais do que essa incompletude, o que me incomodou na versão brasileira do debate foi a ênfase excessiva nas ideias de “distorção” e “mal uso” do conhecimento científico por grupos mal intencionados, em oposição a uma prática científica que seria necessariamente desinteressada. Se, por um lado, é importante dizer que o conceito de raça inexiste para a Ciência e é uma construção social comumente utilizada para perpetuar privilégios, por outro, a atribuição desse poder supremo à Ciência – já que é o fato de não existir para a Ciência que impediria seu uso como justificativa do racismo – e o retrato da prática científica como obra de seres iluminados imunes à pressão dos “ricos e poderosos” são imagens que, na direção oposta à pretendida, distanciam Ciência e Sociedade e impedem o olhar crítico inclusive para uma Ciência que é, hoje e já há bastante tempo, um dos principais instrumentos de poder, de construção e manutenção de hegemonias.

Como eu comentei algumas vezes nas últimas semanas, Ciência e Tecnologia ocuparam nestas eleições espaço significativo na arena pública brasileira. Mais recentemente, no entanto, ficou claro para mim como é fácil prometer mais recursos e a valorização da comunidade científica do País, quando se avalia que é essa promessa que renderá mais votos. Ambos os candidatos à Presidência da República a fizeram, um deles só nos últimos dias, em uma inversão total do discurso anterior. Mas, acreditar e defender a Ciência e as evidências científicas e, mais do que isso, a racionalidade e o pensamento científico associados à busca da equidade entre todas as pessoas, vai muito além de garantir o financiamento à prática científica. Exige também garantir a convivência entre diferentes formas de olhar o mundo, o espaço para o debate e o questionamento, e promover a cultura científica não como supremacia de uns ou outros, mas como oportunidade de participação de todas as pessoas na definição e concretização do nosso futuro. E esta promessa, mais difícil, um dos candidatos não fez.

Boas leituras e que continuemos lutando pelo melhor futuro para todos nós.

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