Ciência distante do Código Florestal Mariana Pezzo 2 de março de 2018 Coluna Mídia e Ciência No cabo de guerra entre ruralistas e ambientalistas sobre o Código Florestal, evidências científicas ficam na sombra Dentre as várias funções sociais da mídia está a de proporcionar canais de acesso a informação compreensível e relevante e, assim, facilitar discussões informadas entre diferentes atores sociais e a resolução de disputas. Nos últimos dias, na cobertura do julgamento do Código Florestal no Supremo Tribunal Federal (STF), nenhum desses papéis chegou perto de ser bem desempenhado. Muito pelo contrário: além de não informar, o discurso midiático sobre o julgamento só fez acirrar o conflito entre ambientalistas e ruralistas, reforçando o maniqueísmo no debate como se ele fosse a única forma de olharmos para o Código. Comecemos pela falta de informação. Mais uma vez, o que vimos foi um silêncio de meses, talvez anos, abruptamente substituído por avalanche de textos e cacofonia de vozes que, para quem não vinha acompanhando o assunto bem de perto, só dificultaram qualquer tentativa de aproximação. Foi difícil até mesmo sabermos dos fatos: que, quase seis anos após a aprovação do novo Código Florestal pelo Congresso Nacional – em substituição a legislação anterior de 1965 –, o Supremo iria julgar quatro ações de inconstitucionalidade envolvendo cerca de 70% dos artigos do Código (sendo três ações da Procuradoria-Geral da República e uma do PSOL) e uma em defesa da sua constitucionalidade (do Partido Progressista, o PP). Mais difícil foi entender as questões em disputa – reunidas em 22 pontos –, que confundiram até mesmo os ministros, já que, após a declaração de 10 dos 11 votos, ainda restavam dúvidas sobre o significado das manifestações. Sobre esses pontos, minha sugestão de leitura é o resumo do Instituto Socioambiental, avaliando as boas e as más notícias para o ambiente. Porém, além da falta de informação, mais importante talvez seja o discurso que parece a narração de uma partida de futebol – ou melhor, de uma luta do UFC –, por descrever sobretudo o cabo de guerra entre posições desenvolvimentistas e conservacionistas. Ao mesmo tempo, no entanto, esse discurso não apresenta de forma clara e transparente os interesses por trás dos diferentes argumentos. E mais, ouso dizer: tende, em grande parte dos casos, para um dos lados, ao apresentar possíveis mudanças no Código majoritariamente como ameaças à produção agropecuária e a outros empreendimentos econômicos, e não como medidas importantes à conservação dos recursos naturais. Nas notícias e, sobretudo, nos vários textos opinativos – editoriais e colunas – publicados sobre o julgamento, há também a prevalência de visões reducionistas, fragmentadoras, que falam do julgamento como se fosse única e exclusivamente uma questão econômica OU ambiental OU jurídica. Ele é tudo isso, e também uma questão que diz respeito ao conhecimento científico disponível, que não é pouco. Mas a Ciência anda mesmo em baixa, inclusive em parte da mídia: o Estadão, por exemplo, publicou editorial afirmando ser uma irresponsabilidade o STF proceder como se estivesse debatendo “academicamente uma teoria, sem maiores consequências práticas para a Nação”. Ou seja, sugerindo que os debates acadêmicos e as teorias que embasam e legitimam o conhecimento científico são, fundamentalmente, inúteis! Paralelamente, Gilmar Mendes afirmou que posições da comunidade científica contrárias ao Código tal como está são “mero achismo” – no que foi prontamente refutado por carta de repúdio da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC) e da Academia Brasileira de Ciências (ABC). Cartas de repúdio, no entanto, não serão suficientes, mesmo que sejam necessárias. O Congresso Nacional, ainda em 2012, não levou em consideração o conhecimento científico em sua decisão sobre o Código. A mídia, agora, também não deu espaço a esse ator nas suas narrativas sobre o conflito. E mesmo os pesquisadores, ao defenderem a relevância das evidências científicas no processo de tomada de decisão – como fez, por exemplo, o ecólogo Jean Paul Metzger na Folha de S. Paulo –, muitas vezes não se dão ao trabalho de explicar para o público quais evidências são essas, pedindo quase que fé naquilo que estão dizendo. Sobre os impactos do Código Florestal Há, felizmente, algumas boas fontes de informação sobre o assunto, ainda que nem todas para não especialistas. Um número especial da revista Biota Neotropica, do final de 2010, traz vários estudos sobre possíveis impactos do Código sobre peixes, anfíbios, répteis, pássaros, mamíferos, borboletas, abelhas e recursos hídricos, além de um comentário sobre a falsa dicotomia entre preservação da vegetação e produção de alimentos e da proposta de um Código da Biodiversidade, de Aziz Ab’Sáber. Outra dica é a publicação “O Código Florestal e a Ciência: Contribuições para o diálogo”, do grupo de trabalho criado pela SBPC e pela ABC. O julgamento do STF terminou no momento em que eu preparava essa coluna, e ainda não havia análises claras. Recomendo, no entanto, o acompanhamento dos resultados, que, é importante lembrar, não dizem respeito apenas a nós e ao Brasil de hoje, mas às futuras gerações, com as quais temos um compromisso ético. Por vários motivos, vivemos um momento definidor desse futuro, e não podemos agir como se não tivéssemos nada a ver com isso. A Amazônia pode estar a um passo do colapso, como vimos em outras notícias desta semana, e a Câmara logo deve olhar para outra legislação importante, de licenciamento ambiental. Nada acabou. Por isso, boas leituras, e uma boa semana! Mídia e Ciência também disponível em vídeo