Diagnóstico por imagem para a “cura gay” Mariana Pezzo 29 de setembro de 2017 Coluna Mídia e Ciência No último dia 26, o jornal Nexo publicou ensaio de dois especialistas em Direito demonstrando como a proibição da “reorientação homossexual” como prática psicológica é um imperativo constitucional. Nele, resgatam a história de luta contra o preconceito e pela garantia de direitos desde a Ditadura Militar, ressalvando como ainda sobrevive e até mesmo cresce “um discurso que classifica a homossexualidade como um misto de pecado, falta de vergonha e doença”. O ensaio trata da patologização como “tentativa de legitimar preconceitos e discriminação, de modo pseudocientífico”. Um estudo noticiado na Folha de S. Paulo na segunda-feira, 25 de setembro, não necessariamente patologiza a homossexualidade, mas sem dúvida contribui com visões de mundo que levam à patologização. Trata-se de pesquisa com inteligência artificial desenvolvida nos Estados Unidos, que resultou, supostamente, em um algoritmo capaz de dizer se uma pessoa é hétero ou homossexual a partir da análise do seu rosto. Tanto a reportagem da Folha quanto várias outras publicadas na mídia nacional e estrangeira foram bastante cuidadosas em abordar a polêmica decorrente do estudo e apontar os inúmeros perigos derivados da utilização de tecnologias dessa natureza. Reinaldo José Lopes, autor do texto da Folha, demonstrou cautela especial em duas ações: 1. um atraso de cerca de 10 dias na publicação, em relação a outros veículos brasileiros, possivelmente para obter os comentários de especialistas incluídos na matéria; e 2. a reprodução da íntegra desses comentários em seu blog, Darwin e Deus, para que os leitores pudessem ter acesso à versão sem edição. (Aliás, comparar os excertos incluídos na reportagem com o depoimento na íntegra é um exercício interessante de leitura crítica de mídia.) No entanto, é chocante – sem exageros na escolha do adjetivo – que os riscos do uso da tecnologia tenham jogado quase que inteiramente nas sombras aquela que, para mim, é a questão central nessa história toda: a biologização da sexualidade e, em última instância – considerando inclusive pesquisas anteriores dos mesmos autores –, a biologização do social. Esse determinismo biológico ignora o fato de que a sexualidade como a conhecemos hoje – e, sobretudo, o discurso contemporâneo sobre a sexualidade – são também culturais, e que esse discurso, enquanto instrumento de poder, busca normatizar o comportamento sexual de acordo com padrões estabelecidos historicamente, definindo a normalidade e punindo (ou buscando “curar”, o que dá na mesma) o “desvio”. E, em suma, naturaliza a relação unívoca entre biologia e comportamento, e legitima, pela pseudociência, o preconceito e a discriminação, como registrado inicialmente. Não é preciso ir longe para lembrarmos das consequências dessa visão de mundo em outros momentos históricos: tivemos, no final do século XVIII, a frenologia, que pretendia determinar a capacidade mental e o caráter de uma pessoa pela análise de sua estrutura craniana; e, há menos de 80 anos, a eugenia nazista, que matou mais de 10 milhões de pessoas, uma parte delas, inclusive, por serem homossexuais. Registre-se, no entanto, que não estou pregando a alcunha de pseudociência – e, muito menos, de eugenista! – ao estudo sobre o qual falamos ou àqueles que o reportaram. Só alerto sobre os perigos dos seus pressupostos, para além dos riscos da sua utilização. Aliás, é preciso cuidado inclusive com as ideias de “validade científica” e “rigor metodológico”, usadas à exaustão nas narrativas sobre o estudo. Primeiramente, além de alguns questionamentos que já foram feitos à própria metodologia, não podemos esquecer que a Ciência é uma produção humana, repleta de escolhas: foram humanos que programaram o algoritmo, que determinaram os pontos faciais que serviriam de referência na análise, que optaram por buscar os dados em sites de relacionamento… Foram humanos, em alguma medida comprometidos com o determinismo biológico, que interpretaram os resultados como corroboradores da origem embrionária da homossexualidade, e não como padrões relacionados às fotos que as pessoas escolhem colocar nos sites de relacionamento! Não foram máquinas, e muito menos deuses, imunes a qualquer tipo de interesse, viés ou erro. Mas, mais importante do que isso, é preciso lembrar que a validade científica vai além da validade interna à própria Ciência. Sobre isso, a mesma Folha publicou, em 24 de setembro, a coluna intitulada “O perigo da ‘plena liberdade científica’”, de Marcius Melhem, escrita no contexto dos debates mais recentes sobre a autorização da “cura gay”. Ela nos lembra, mais uma vez, como a Ciência já validou, no história da Humanidade, práticas hoje sabidamente ineficazes e, mais do que isso, única e exclusivamente violentas. Além disso, é bom sempre lembrarmos como cientistas não agem isolados do mundo, devendo se responsabilizar não apenas pela gênese do conhecimento que produzem – ou seja, pela validade interna à própria Ciência (no caso, o rigor metodológico tão alardeado) –, mas também pelo seu destino na sociedade. Os autores do estudo – Michael Kosinski e Yilun Wang – afirmaram, em sua defesa, que um dos seus principais objetivos foi alertar para usos possíveis da inteligência artificial. Na Folha, pesquisadores brasileiros reforçaram esse argumento, afirmando que ignorar seria pior do que oferecer a oportunidade do debate público. Eu tenho as minhas dúvidas, já que, na sociedade do espetáculo em que vivemos, muitas vezes só o que se deseja é a visibilidade. No entanto, de uma coisa eu estou certa: essa visibilidade, sem a crítica vigilante e abrangente, só aumenta os riscos existentes desde o momento em que o estudo foi concebido, especialmente em tempos de “cura gay”, “Escola sem partido” e, agora, ensino religioso de uma única religião.