Carne fraca e o papelão da zika Mariana Pezzo 24 de março de 2017 Coluna Mídia e Ciência A ideia de promoção de uma cultura científica junto a pessoas de todas as idades está relacionada à convicção de que, assim como as Artes, em maior ou menor grau, fazem parte da cultura que permeia nossa relação cotidiana com o mundo, o conhecimento científico e seus processos de produção também deveriam fazer. Embora a maior parte das pessoas nunca tenha estudado formalmente a música erudita, somos capazes de nos relacionar com ela – e nos emocionar, com mais ou menos facilidade – quando o encontro acontece, não somos? Porém, o mesmo não se aplica à oportunidade de nos maravilharmos com a notícia da detecção de ondas gravitacionais, e não me parece que isto seja inevitável, ainda que transformar essa realidade continue sendo um imenso desafio. Para caminharmos neste sentido, é positivo que o conhecimento científico na mídia esteja cada vez menos restrito às editorias de Ciência, aparecendo nas demais editorias como mais um olhar relevante na interpretação do mundo em que vivemos. Nesta semana, uma oportunidade foi a onipresente cobertura (espetáculo talvez seja a palavra mais apropriada…) sobre a Operação Carne Fraca da Polícia Federal. Após o primeiro impacto na sexta-feira, que quase nos transformou todos imediatamente em vegetarianos, os dias seguintes começaram a permitir vislumbres das várias nuances envolvidas e, inclusive, que a lógica científica também fizesse as suas ponderações. Não poucos veículos entrevistaram pesquisadores e outros especialistas sobre ácidos ascórbico e sórbico, salmonela, papelão e cabeça de porco e, dentre eles, destaco dois textos. O site da Superinteressante publicou, no dia 20, artigo divertido intitulado “A real sobre o bife de papelão – e outros mitos sobre carne”, que fala de “superpoderes atribuídos a substâncias não tão mágicas assim”, como o papelão e o ácido ascórbico. É relevante, por exemplo, que a revista destaque inclusive que o papelão diminuiria a vida útil do alimento, acarretando prejuízos econômicos, assim como o uso excessivo da vitamina C, que é cara. Mais detalhado, o texto publicado no blog Gene Repórter também merece a leitura. A partir da questão que dá título ao artigo – “Como é que é? Vitamina C causa câncer?” –, são oferecidas três “respostas”. A primeira, “curta”, é simplesmente “não”. A “resposta menos curta” já pondera que, “tanto quanto podemos saber”, o ácido ascórbico não causa câncer. Na “resposta longa”, o autor apresenta um estudo de revisão da literatura para, de um lado, encontrar as origens da associação da vitamina C com o câncer e, de outro, retratar mais fielmente o conhecimento disponível sobre efeitos da substância no corpo humano, incluindo, por exemplo, também a associação com cálculos renais. Ao fazê-lo, o texto permite vislumbres importantes sobre a natureza do fazer científico, inclusive o fato da Ciência não necessariamente nos oferecer respostas simples em termos de “sim” e “não”, como às vezes desejamos. Mas a semana também teve papelão em um veículo no qual a informação, especialmente a científica, deveria ser muito mais cuidadosa. O Jornal da USP publicou, no dia 17, coluna de Ciro Marcondes Filho, professor titular da Escola de Comunicações e Artes, na qual o docente comenta suposto relatório de uma associação de médicos argentinos que aponta a adição do larvicida Pyriproxifen à água – e não a zika – como causa do surto de microcefalia em bebês brasileiros. A história toda não tem pé nem cabeça, inclusive – mas não só – porque uma simples e rápida busca no Google nos mostra que a notícia falsa ganhou visibilidade, e foi desmentida, em fevereiro do ano passado! Como se fosse possível ficar pior, a coluna está associada à Cátedra Unesco “José Reis” de Jornalismo Científico, e Marcondes Filho limitou-se a uma errata dizendo que não é a Monsanto que produz o Pyriproxyfen… O Jornal da USP também registrou apenas que “acredita que a divulgação científica implica responsabilidade e verificação rigorosa dos fatos” e que “os colunistas têm total independência”, e sugeriu fortemente a leitura do artigo publicado pelo também professor da USP Jean Pierre Schatzmann Peron, que destaca evidências robustas da responsabilidade do zika pela microcefalia, inclusive resultantes de pesquisas da própria USP! O que eu acredito é que a coluna não deveria mais estar no ar, e que a retratação teria de ser muito mais enfática. Além disso, o episódio todo reforça mais uma vez a importância da leitura crítica, já que uma série de características da história nos dão pistas da sua inconsistência – a começar pela referência vaga à fonte da informação, uma associação de médicos argentinos que não é caracterizada além disso, e pela ausência completa de informações sobre as bases sobre as quais a afirmação se sustenta. As dicas de leitura desta semana falam sobre Ciência e ética. A revista Science publicou na sexta texto sobre o código de ética elaborado pelo povo San, da África do Sul, estabelecendo condições para os pesquisadores que, há mais de um século, estudam sua cultura e seus genes. Esta publicação mais recente me lembrou do livro “A Vida Imortal de Henrietta Lacks”, que em breve estreará como filme estrelado por Oprah Winfrey. A obra é uma biografia da mulher negra que, morta em 1951 por um câncer cervical nos Estados Unidos, tem células vivas até hoje na primeira e até hoje uma das principais linhagens de células humanas utilizadas em pesquisas médicas, sem conhecimento e/ou consentimento da família de Henrietta. Boa leitura, e boa semana.