Reportagens sobre a Amazônia ilustram como abuso de fact checking pode aprofundar a desinformação

Tanto já foi dito, mas há ainda muito por dizer sobre os incêndios na Amazônia e a crise instalada a partir deles. Estamos no olho do furacão e faltam, por isso, análises menos apaixonadas, que nos permitam compreender a particularidade do momento presente. Devemos, também, pensar porque as queimadas só ganharam visibilidade depois da fumaça atingir o céu de São Paulo. Neste pedacinho que me cabe e onde imagino poder contribuir, escolho falar sobre como a Ciência foi chamada a participar do debate. Para isso, uso o exemplo do Jornal Nacional, que, em 1º de setembro, completa 50 anos de grande impacto na trajetória do Brasil e dos seus mais de 40 milhões espectadores diários.

A presença do tema no telejornal foi crescendo ao longo da semana e, na quinta-feira, dia 22 de agosto, ocupou quase metade do tempo total, em uma sequência que começa e termina com a palavra de Jair Bolsonaro. Ao final, em tom grave, William Bonner anuncia: apesar de várias autoridades e celebridades estarem clamando pela defesa do “pulmão do mundo”, a Amazônia não faz jus ao apelido, “usurpado” da flora marítima, esta sim responsável pela maior parte do oxigênio que respiramos. O apresentador então avisa que o equívoco seria desfeito no dia seguinte, em reportagem na qual cientistas – pretensamente – desautorizaram a alcunha, esclarecendo que a Floresta consome a maior parte do oxigênio que produz.

Deixando de aprofundar outras características alarmantes da cobertura do Jornal Nacional – como, por exemplo, o tratamento da questão em termos de um Fla x Flu entre Bolsonaro e Lula –, me restrinjo ao que vejo como atenção exagerada à metáfora do pulmão, também questionada, é importante registrar, pelo Vice-Presidente da República, Hamilton Mourão, minutos antes do Jornal Nacional ir ao ar, na mesma quinta-feira. Para situar meu estranhamento, é importante relembrar também que, em outro momento – batizado de “Fato x Fake” –, a cobertura destacou como várias manifestações em defesa da Amazônia nas redes sociais usaram fotos de incêndios passados, inclusive em outras florestas.

Neste contexto em que grassam imagens e dados fabricados ou manipulados para defender posições polarizadas estanques, é sim importante evidenciar uma fotografia mal utilizada, ou esclarecer que a relevância da Amazônia não está no oxigênio que ela produz. No entanto, a mensagem poderia ter sido outra, afirmativa. A Ciência poderia estar lá para apresentar fatos, e não para denunciar o que é fake. Para abordar a
relevância da biodiversidade amazônica – inclusive econômica, se é esta a única música ouvida –, destacar a clara relação entre desmatamento e fogo ou, mais importante, deixar claro o impacto da Floresta sobre o clima em todo o mundo. Mas não: ela foi chamada para desautorizar o discurso que acusa uma emergência planetária e, assim, intencional ou acidentalmente, relativizar a gravidade da situação.

Seja qual for o objetivo originalmente pretendido pelo Jornal Nacional – abrandar as críticas ao governo de Jair Bolsonaro, adensar a cortina de fumaça ante a questão amazônica ou defender a “soberania” brasileira –, certamente não foi qualificar o debate público por meio do conhecimento científico! No domingo, dia 25, uma reportagem exemplar de Álvaro Pereira Júnior no Fantástico veio, aparentemente, desagravar a Rede Globo frente às críticas ao seu principal telejornal. No entanto, no que diz respeito à Ciência, bem como à crise de desinformação que vivemos, o Fantástico mantém elementos que, na minha opinião, só reforçam o ataque ao conhecimento especializado. O repórter, na frente de uma tela com as imagens de satélite a partir das quais o INPE (Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais) emite alertas de incêndio, anuncia que “vai
pra lá”, para o ponto no mapa em que, supostamente, um incêndio consome as árvores. E vai, construindo uma narrativa sugestiva, mesmo que subliminarmente, de que não é suficiente a confiabilidade da análise científica: é preciso ver para crer, e isto a Globo faz para você!

Conhecer não diz respeito a etiquetar pacotes de informação como verdadeiros ou falsos e, tampouco, a consumir acriticamente declarações e dados científicos como saber supremo e inquestionável. Ter uma relação saudável e produtiva com a informação passa, necessariamente, por conseguir localizar e desfrutar adequadamente de fontes diversificadas, avaliar essas diferentes fontes e analisar pontos de vista distintos, para
inserir essas informações em um contexto e conferir sentido a elas, chegando assim a uma compreensão informada e, ao mesmo tempo, própria, autônoma.

No meu caso, apesar das dificuldades enfrentadas ao buscar conferir algum sentido à multidão de dados torcidos à direita e à esquerda, concluí, depois de muitas leituras (dentre as quais destaco o texto de Rafael Garcia na Folha de S. Paulo), que: 1. ainda não é possível dizer que houve crescimento das queimadas em 2019, mas certamente não houve redução; 2. no caso do desmatamento, o aumento é inquestionável, mesmo que os números ainda precisem ser lapidados; e 3. há evidências robustas da associação entre o desmatamento e a ocorrência das queimadas. Concluí, também, que da mesma forma que a interpretação de indicadores exige cautela, é perigoso embarcarmos acriticamente na pressão internacional sobre o Brasil, particularmente nos discursos impecáveis de líderes dos países mais desenvolvidos, já que há inúmeros outros interesses a serem considerados além de um compromisso altruísta com a Floresta. No entanto, é inquestionável – e praticamente consensual, me parece – que a postura de Jair Bolsonaro é, neste momento, uma imensa – se não a maior – ameaça à Amazônia e, assim, à vida de todos os habitantes deste planeta, bem como à economia e aos interesses soberanos deste país.

Concluí, por fim, que não há um problema tão grande com a metáfora do pulmão. A Amazônia não é a responsável pela produção do oxigênio que respiramos, mas tampouco o são os nossos pulmões. O que eles fazem é permitir trocas gasosas que nos possibilitam a vida e, quando doentes, tornam essa vida muito mais difícil e, em casos extremos, impossível. Metaforicamente, não parece adequado compará-los à Floresta Amazônica?

Crédito da foto: ESA/NASA – L. Parmitano

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