Repercussão da primeira imagem já produzida de um buraco negro oferece farto material de análise crítica de mídia

Não foi nada simples escolher sobre o que falar na coluna desta semana. São múltiplas as camadas de análise possíveis da notícia científica da semana, do mês, do ano e, para alguns, até mesmo do século: a divulgação da primeira imagem jamais produzida de um buraco negro.

A esta altura, se você não viu o círculo escuro rodeado por uma espécie de anel luminoso, não está familiarizado com o nome e o rosto sorridente de Katie Bouman ou não sabe que Albert Einstein marcou mais um golaço, deve estar acessando esta coluna em algum outro planeta! Neste aqui, quase todos fomos expostos ao espetáculo criado a partir do anúncio da “foto” do buraco negro, na quarta-feira 10 de abril, e não deve ser fácil encontrar alguém que negue a importância do feito. Mas quantas pessoas conseguem explicar de onde vem essa importância?

Ela vem da possibilidade de novas descobertas sobre os buracos negros? Apesar de imaginar que sim e de ter lido a afirmação em alguns lugares, não consegui ter clareza de quais conhecimentos a imagem acrescenta àquilo que já se sabe sobre buracos negros.

Vem do sucesso de um trabalho coletivo que envolveu mais de 200 pessoas em vários países e da concretização de um avanço tecnológico e de instrumentação científica que nos permitiu captar sinais emitidos há mais de 50 milhões de anos, quando o ser humano sequer sonhava em existir? Certamente, embora o detalhamento e o destaque a esses avanços apareça apenas em alguns poucos textos.

Do fato da imagem ser praticamente idêntica àquelas produzidas a partir de simulações e, assim, confirmar, mais uma vez, a Teoria da Relatividade Geral? Sem dúvida. Aqui, é importante lembrar algo que também apareceu muito pouco: a informação de que quem previu os buracos negros foi o alemão Karl Schwarzchild, no front de batalha da Primeira Guerra Mundial, e que Albert Einstein resistia à ideia da possibilidade de sua existência real. Além disso, não posso deixar de registrar que, em várias reportagens, a abordagem feita do conceito de “teoria”, em oposição à evidência concreta agora encontrada, me parece consolidar a ideia de teoria como mera especulação, o que não é correto e, particularmente neste momento histórico, pode ser bastante perigoso.

Ainda no que diz respeito a provas experimentais da Teoria da Relatividade, é uma pena o esquecimento quase completo, nas matérias publicadas na mídia brasileira, de que em 2019 comemoramos o centenário da primeira dessas confirmações, concretizada em solo brasileiro: a observação do eclipse solar de maio de 1919 em Sobral, no Ceará. Por uma feliz coincidência, no entanto, o eclipse está na capa da revista Pesquisa Fapesp deste mês.

Se faltaram algumas coisas na cobertura, uma sobrou: o destaque ao papel de uma jovem mulher no feito. Defendendo, sem qualquer intenção na direção contrária, a relevância de conferir visibilidade à participação das mulheres na Ciência, a forma como isto se deu neste caso me incomodou, por vários motivos. Primeiramente, pela falta de criatividade, já que a mesma história foi contada quase sem variação por dezenas, talvez centenas de veículos ao redor do mundo. Mas, mais importante do que isso, o discurso repetido à exaustão – somado às imagens que o ilustraram – pareceu cristalizar, nas suas entrelinhas, uma espécie de “espanto” com o fato de, “apesar de ser mulher”, Katie ter conseguido ir tão longe.

A jovem, aliás, não é a única mulher envolvida na produção da imagem: elas representam quase um quarto da equipe, como destacou o The New York Times. Mesmo assim, ela é sempre apresentada como aquela tornou possível o sucesso de um “esforço coletivo de astronômOs, engenheirOs e matemáticOs”, como formula o Huffpost, só para citar um exemplo dentre vários outros. E não venham me dizer que, em Língua Portuguesa, o masculino é universal, ou algo assim. Em frases como esta, dói nos ouvidos – ao menos nos meus – a exclusão de astrônomas, engenheiras e matemáticas, mesmo com todo o auê em cima de Katherine Bouman (sim, o nome dela é Katherine)!

Dessa mesma forma, Margaret Hamilton, comparada a Katherine em mais de uma ocasião, é apresentada como aquela que ajudou o homem a chegar à Lua, em 1969. O homem. Se, tanto tempo depois, uma mulher em papel de destaque no universo científico continua sendo tratada como coadjuvante e, além disso, como exceção e motivo de tanta comoção, talvez seja, ao menos em parte, devido à forma como viemos falando (ou deixando de falar) sobre elas ao longo destes 50 anos. Já passou da hora, portanto, de encontrarmos um outro discurso, que lhes dê visibilidade sem tratá-las como animais exóticos em exposição.

Boas leituras, e até a semana que vem.

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