Era uma vez…

Não sei se é possível dizer que a situação está favorável para alguém ou alguma coisa, mas para a Ciência certamente não está. Reduções orçamentárias drásticas – não apenas no Brasil –, juntamente com ataques à legitimidade do empreendimento científico (e, mais do que isso, ao conhecimento científico em si), tornam cada vez mais urgente que a sociedade se levante em defesa da Ciência. E, quando ela não se levanta – que é o que temos visto acontecer –, a responsabilidade comumente recai sobre a falta de comunicação dos cientistas com a sociedade, e a esperança sobre a habilidade de contar histórias emocionantes, que toquem diferentes pessoas naquilo que lhes é mais caro, “acendendo uma chama” que faça brilhar os olhares e mobilizarem-se os imóveis.

Há alguns dias, o IPCC (Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas, principal autoridade na Ciência do Clima) lançou um manual de comunicação para os seus pesquisadores, com o objetivo de promover o envolvimento do público com as questões climáticas. A publicação fala em produzir mensagens mais fáceis e relevantes, que concretizem o que ainda parece um tema abstrato e intangível, e substituam estatísticas “frias e burocráticas” por assuntos mais próximos da experiência cotidiana das pessoas. O Manual apresenta seis princípios, dentre os quais estão a diretriz de “falar sobre o mundo real”, e não sobre “ideias abstratas”; a instrução para buscar criar conexões com aquilo que realmente importa para cada público; e, também, justamente a valorização das narrativas, das histórias com conflitos e sua resolução, que priorizem o aspecto humano dos diferentes assuntos.

Na mídia brasileira, já é possível notar uma tendência dessa perspectiva de contação de histórias da Ciência. O jornalista Herton Escobar, do Estadão, produziu dois exemplos notáveis recentemente. Nesta semana, nos contou a história de Isis, onça-pintada nascida em cativeiro no Brasil há seis anos, que agora está aprendendo a ser selvagem para iniciar um processo de reintrodução da espécie em área de Pantanal na Argentina. Em janeiro, escreveu um texto sensível e emocionante sobre Lobinha, fêmea de lobo-guará resgatada ainda filhote de um canavial paulista e também treinada para ser reintroduzida na Natureza, na Serra da Canastra, em Minas Gerais.

Isis é a esperança. Lobinha também era, até morrer muito precocemente, de forma trágica. Nos textos, prevalece a emoção, reinam os adjetivos, sobram personagens, e talvez falte um pouco de Ciência. Particularmente nas questões ambientais, sem dúvida quase quaisquer meios são válidos para despertar a atenção e mobilizar as pessoas para as mudanças urgentes sem as quais não haverá mais Isis, Lobinhas, Pantanal, Serra da Canastra, Hertons, Marianas… Mas não me parece fazer muito sentido levantarmos a bandeira da relevância das evidências científicas e, ao mesmo tempo, entrarmos em uma busca um tanto paradoxal por falar de Ciência sem falar da Ciência!

Um outro exemplo recente me ajuda a explicar do que estou falando. No final de 2017, muitos de vocês devem ter visto – e se chocado – com a imagem do urso polar esquelético filmado pela National Geographic enquanto muito provavelmente morria de fome. Agora, muitas matérias recuperaram aquela imagem para introduzir a notícia de um estudo publicado na Science no último dia 1º, que mostra como os ursos polares podem ser muito mais vulneráveis às mudanças climáticas e, assim, estarem muito mais perto da extinção do que imaginávamos até agora. Oras, as duas abordagens não são excludentes: a imagem chocante do urso faminto talvez seja essencial para que prestemos atenção a um outro vídeo, que explica o motivo dos ursos polares estarem morrendo de fome e, assim como bons textos publicados no The Guardian e, em Português, no Observatório do Clima, as relações com o aquecimento global.

Voltando ao manual do IPCC, além de destacar o caráter muitas vezes abstrato dos conceitos científicos, ele também recomenda o foco no conhecido, naquilo que sabemos, em oposição ao mar de incertezas que muitas vezes é a própria definição do fazer científico. Eu acho que o conhecido, o certo, o concreto, o chocante e o emocionante são bons pontos de partida, mas não podem, nunca, ser suficientes. Se a incerteza e a dúvida continuarem sendo vistas como falhas e incômodo, e não como valor, a prática científica será cada vez menos compreendida, e cada vez mais atacada. E, se as emoções e opiniões continuarem tão avassaladoras a ponto de obscurecerem a razão e prescindirem dos fatos, será cada dia mais difícil dialogarmos com aqueles que pensam diferente de nós.

Se as pessoas se identificarem apenas com o urso do vídeo, com a onça Isis e a loba-guará Lobinha, sem compreender o que fez com que eles existissem e como o conhecimento científico pode ajudar a melhorar um pouco a situação, talvez amem Isis, mas não a onça que matou o gado; e até chorem pelo urso, mas não tomem atitudes – individual e coletivamente – que favoreçam a diminuição do ritmo do aquecimento global.

As mudanças climáticas nem sempre assumem uma cara tão dramática quanto a daquele urso moribundo. O estudo da Science, por exemplo, mostra que a perda de peso pode estar acontecendo um pouco a cada degelo. Porém, se continuarmos precisando do drama para agir, certamente será tarde demais quando esse dia chegar, e não só para os ursos.

Boas leituras, para quem for ler, e um feliz Carnaval pra todo mundo!

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