Nos últimos dias, voltamos a vivenciar aquela situação em que todas as editorias de Ciência amanhecem com uma mesma manchete. O motivo é a política de embargo dos principais periódicos científicos, que divulgam os artigos a serem publicados na próxima edição com antecedência para jornalistas – para que tenham tempo de apurar suas matérias –, sob a condição de que a notícia não seja publicada antes de uma determinada data.

Desta vez, o assunto foi um estudo sobre câncer publicado na Science na última sexta-feira, que, no Brasil, foi destaque em quase todos os principais veículos, assim como em vários outros países. A pesquisa se debruça sobre a participação de mutações aleatórias no aparecimento de diferentes tipos de câncer – em comparação com a participação de fatores ambientais e dos fatores hereditários. Os autores concluem, considerando 32 tipos de câncer, que, na média, 66% das mutações são devidas ao acaso, 29% a causas ambientais (como o fumo e a exposição ao sol, por exemplo) e apenas 5% a fatores hereditários.

Estes são números perigosos, se mal interpretados. Um primeiro cuidado diz respeito à compreensão de que estamos falando não de 66% dos casos ou dos tipos de câncer sendo explicados por pura má sorte, mas sim desta proporção de mutações que causam câncer – dois terços – sendo explicadas pelo acaso. Em relação a este aspecto, a Imprensa brasileira foi bem, com todos os textos que vi explicitando, já nos títulos, essa particularidade. Em geral, as notícias também registraram, com mais ou menos ênfase, que a prevenção continua sendo importante.

Porém, quando falamos nos 66%, estamos justamente nos referindo à média entre os 32 tipos de câncer estudados, sutileza que as manchetes não puderam, ou quiseram, captar. Embora quase todos os textos, em seu interior, tenham registrado essa informação, o destaque não foi para o fato de que, no caso do câncer de pulmão, de nariz e no esôfago, por exemplo, os fatores ambientais suplantam em muito os demais.

A cobertura jornalística de temas relacionados à nossa Saúde requer ainda mais cuidado do que outros assuntos científicos, pelo interesse que despertam e pelo impacto que essas notícias podem ter em termos de questões tanto de saúde pública quanto de comportamento individual. Neste caso específico, um dos riscos é, justamente, o entendimento de que a prevenção é desnecessária. Outros pesquisadores questionam outros aspectos do estudo, como, por exemplo, o olhar para distintos tipos de câncer como se fossem um mesmo fenômeno, quando as diferenças são essenciais; a abordagem reducionista de um problema extremamente complexo; e a adoção de pressupostos questionáveis. Estas e outras críticas são apresentadas na notícia elaborada pela própria Science. Na cobertura nacional, no entanto, mais uma vez o contraditório ficou de fora.

E a polêmica não é de hoje.

Na edição de 2 de janeiro de 2015 da mesma Science, outro artigo dos mesmos autores já abordava a relação entre mutações aleatórias e fatores hereditários e ambientais como causas de câncer. Não foi só o artigo que desencadeou fortes reações contrárias – inclusive, por exemplo, da Organização Mundial da Saúde, bem como de outras organizações da área dedicadas à prevenção do câncer. Também gerou confusão a notícia sobre ele publicada no site da Science, de autoria da mesma Jennifer Couzen-Frankel que noticiou a publicação atual.

Depois de escrever que “mutações aleatórias em células-tronco podem explicar dois terços dos cânceres” e ser ela também alvo de muitas críticas, Couzen-Frankel publicou texto de autocrítica em que encerra sua reflexão afirmando que, de toda a controvérsia, para ela, a principal mensagem que ficou foi: “A Ciência é complicada, e as pessoas se importam profundamente com a biologia de doenças que afetam a elas mesmas e seus entes queridos. Destilar essa história – com limitações de espaço, com um desejo de uma escrita clara que prenda a atenção dos leitores e os ajude a compreender – implica riscos para cientistas e jornalistas. São estes riscos que eu espero nunca esquecer – mesmo que eu cometa erros de vez em quando.”.

A jornalista também conta como demorou e quantas conversas teve de ter até entender o que de fato significavam os dois terços – que definitivamente não eram dois terços de todos os casos de câncer ou dos tipos de câncer, como o texto permitia entender –, e que essa compreensão veio tarde demais, “depois do meu deadline original”. Resolver este problema – este impasse entre a relevância de reportar o desenvolvimento do conhecimento científico, as várias dificuldades de fazê-lo em alguns casos e os riscos embutidos – não é simples, e permanece sendo um dos principais desafios, se não o principal, das pessoas verdadeiramente comprometidas com a divulgação científica, na minha opinião.

Ter consciência desse desafio, bem como a humildade de reconhecer tanto a ignorância quanto o erro, me parecem ótimos pontos de partida para enfrentá-lo. Por isso, minha dica de leitura desta semana é justamente o texto reflexivo da jornalista da Science. Boa leitura, e boa semana.