Guerra às drogas (e aos dados) Mariana Pezzo 16 de junho de 2017 Coluna Mídia e Ciência “Marginais têm novo aumento de acidentes”. “CET aponta redução de acidentes nas Marginais, mesmo com velocidade maior”. Frases proferidas em anos ou locais completamente diferentes? Não. Por incrível que pareça, a primeira foi publicada na Folha de S. Paulo no último dia 9 de junho, e a segunda em O Estado de São Paulo no dia seguinte. E, caso ainda não tenha ficado claro, sim, as duas se referem às marginais da capital paulista, Marginal Pinheiros e Marginal Tietê. Para quem não se lembra, o Prefeito João Dória aumentou os limites de velocidade nas marginais no início deste ano, contrapondo-se frontalmente à política de seu antecessor, Fernando Haddad, que reduzira esses limites. Desde então, uma guerra de informações em relação aos impactos dessas medidas vem sendo travada, como ilustram essas manchetes diametralmente opostas. Mas, enfim, quem está mentindo? A resposta não é simples, e talvez não possa ser formulada exatamente nesses termos. A matéria da Folha destaca indicadores da Polícia Militar, que mostram aumento de 25% no número de acidentes com vítimas na comparação entre maio deste ano e o mesmo mês do ano passado, e de 38% se considerarmos o quadrimestre de fevereiro a maio. Em relação às mortes, o jornal afirma que o número passou de 8 em 2016 para 11 em 2017, no período de janeiro a maio. Ao final, a Folha comenta como Dória tem tentado desvincular acidentes dos limites ampliados, ironiza o Prefeito – ao registrar como este perdeu sua habilitação justamente por excesso de velocidade, bem como ao ilustrar a matéria com foto dos novos uniformes dos agentes de trânsito, assinados por estilista – e, por fim, registra também a crítica de Dória aos dados da PM, fundada no fato de que ela usa metodologia diferente daquela empregada pela CET (Companhia de Engenharia de Tráfego). E é exatamente sobre os dados da CET que a manchete do Estadão está edificada. Estes dizem que o número de acidentes reportados à polícia entre janeiro e abril caiu 25% em relação ao ano anterior. Não, eu não errei: são os mesmos 25%, mas ao contrário! No que diz respeito às mortes, aqui o número passou de 9 em 2016 para 8 em 2017, no período entre janeiro e abril! O jornal não ignora a discrepância entre esses indicadores e os da PM, faz toda uma discussão sobre diferenças entre dados operacionais e dados consolidados e, em matéria publicada logo abaixo desta, mostra inclusive que o ano anterior teve queda recorde no número de colisões registradas em toda a cidade de São Paulo, coincidindo com a política de redução dos limites implantada pela gestão anterior. Mas, sem dúvida, a mensagem que fica é a da manchete, complementada pelo gráfico em destaque também registrando a tendência de queda de forma inequívoca. Para nos relacionarmos criticamente com a mídia, não basta a postura panfletária de acusar determinado veículo de distorcer a informação para este ou aquele lado. Além de haver muitas nuances e sutilezas entre esses extremos, em grande medida dependemos dos grandes veículos de comunicação para obtermos parte significativa da informação com a qual trabalhamos. É preciso, portanto, uma atenção constante, para identificarmos mecanismos como os aqui relatados, que, sem mentir, podem contar duas verdades completamente diferentes! O mesmo Estadão, por exemplo, nos ofereceu algumas outras pistas ao longo desta semana… Chama a atenção o fato de que, de sexta-feira, dia 9, à quinta-feira dia 15, o tema da dependência química e da guerra às drogas foi pauta do jornal em todos os dias exceto um. Na própria sexta, temos matéria sobre o crescimento na frequência de internações psiquiátricas por planos de saúde – atribuído, sem evidências robustas, à elevação dos casos de dependência –, juntamente com a notícia da morte de dependente “resgatado” da Cracolândia por amigos. Esse conjunto cria o clima de consternação frente à tragédia das drogas, felizmente sendo combatida pela Prefeitura de São Paulo com a instalação de contêineres para tratamento emergencial dos exilados da Cracolândia (tema de outra nota na mesma edição). A edição de sábado é a que pula o tema, mas, no domingo, são várias as páginas, a começar pela que retrata o cotidiano de ex-moradores da Cracolândia em uma clínica de recuperação no interior do Estado – cotidiano este que nos é mostrado como redentor – e, logo abaixo, nos mostra que as internações involuntárias pelas famílias de dependentes vêm crescendo nos últimos anos, mas ainda assim prevalecem as internações voluntárias. Em seguida temos duas páginas de histórias tristes que agora ganham alguma esperança a partir da busca por tratamento. Nos dias seguintes, conhecemos outras histórias tristes, a experiência europeia de combate às drogas, e lemos o relato de mais uma ação de evacuação de praça ocupada por dependentes, em um tom que me pareceu bem mais brando do que o de outros registros feitos. Caso o meu ponto ainda não tenha ficado claro, eu explicito: não se trata da publicação de mentiras o que vemos no Estadão, mas sim de uma tessitura fina de fatos que sustenta as medidas adotadas por João Dória e Geraldo Alckmin. Para compreendê-la – ou discordar de mim –, sugiro veementemente a leitura, pois me pareceu um caso digno de nota. Um último exemplo é já a nossa primeira dica de leitura. No texto “Secretário do Meio Ambiente de Alckmin deita e rola no Estadão”, Maurício Tuffani comenta entrevista publicada no dia 10, criticando seu tom ameno em um cenário de vários ataques ambientais. E, para quem se interessa para uma outra abordagem da questão das drogas, recomendo o livro “Drogas e Direitos Humanos – Caminhos e Cuidados”, lançado nesta semana por pesquisadores do Campus Sorocaba da Universidade Federal de São Carlos (UFSCar). Boas leituras neste feriadão, e uma ótima semana pós-descanso!