Publicação de matérias sobre astrologia em dois grandes jornais em uma mesma semana não deve ser ignorada

Um dia depois do outro, O Globo e Folha de S. Paulo estamparam textos sobre astrologia – e sobre como tem atraído as novas gerações, apelidadas de millenials e Z – em seus cadernos de Cultura e Tecnologia, respectivamente. Rapidamente surgiram as críticas raivosas e amargas de incansáveis “defensores da razão” contra a “massa ignorante” habitante de um planeta que, considerando evidências como estas, talvez “não tenha mesmo mais saída”. Ok, eu também fiquei surpresa, indignada até, e estou aqui escrevendo sobre o assunto, mas em uma reação não às pessoas que crêem, e sim à falta de qualidade e, sobretudo, à irresponsabilidade das referidas publicações.

Sobre a matéria de O Globo, não vou gastar muito espaço: ela não tem pé nem cabeça, com citações como “em uma cultura de fatos alternativos, a verdade se tornou um conceito relativo” reproduzidas sem uma pitada sequer de crítica e, até mesmo, com um endossamento subentendido. O texto busca, como é comum quando se trata do discurso sobre astrologia, aproximá-la de práticas baseadas em evidências e, mais especificamente, científicas, ao falar em “astrologia de resultados” já no título; mencionar “pesquisadores brasileiros” e seu “relatório” – no qual está a frase citada –; e falar de um momento histórico em que os conceitos da astrologia teriam se separado da astronomia, como se ambas trilhassem caminhos que, embora distintos, são de mesma natureza. Mas a reportagem também demonstra qual é a mais nova narrativa legitimadora da astrologia, que critica a generalização excessiva da área no passado e advoga uma prática mais personalizada no presente.

Já a Folha de S. Paulo parece, no início, que vai nos oferecer um texto sobre o fenômeno do interesse cada vez maior das novas gerações pela astrologia, mas logo vira também uma ode aos benefícios que ela pode trazer. O jornal, em primeira pessoa, não diz muito, mas escolhe como porta-vozes seis praticantes de astrologia, dois “consultores de tendências” (que, pelo visto, também estão na moda…) e três personagens, pessoas que passaram por transformações radicais na vida alegadamente por causa da astrologia. Aqui também vemos o discurso pseudocientífico, com uma das fontes apresentadas como “mestre em sociologia e antropologia e astrólogo” e a presidente da Associação Brasileira de Astrologia criticando a astrologia rápida das redes sociais, já que: “O estudo de astrologia leva anos, exige dedicação, um certo nível intelectual e conhecimento de matemática”. E esta também é a única crítica que vemos por aqui, diferentemente do que encontramos em outro texto citado pela própria Folha: uma coluna no The New York Times que de fato destrincha o fenômeno, fazendo uma associação principalmente com as especificidades da Internet e destacando um outro ponto fundamental, que é a configuração da astrologia como conteúdo atraente em termos de negócio. Uma outra citação da Folha é de um artigo no The Guardian ao qual se aplicam os mesmos questionamentos que fiz ao jornal brasileiro, mas que motivou uma réplica que, dentre outros pontos, destaca como o rótulo millenials e a atribuição de determinados comportamentos a este suposto grupo homogêneo virou um clichê jornalístico.

O crescimento do interesse na astrologia, se houver, sem dúvida é um fenômeno a ser investigado e, também, noticiado. Mas, falar da astrologia como fato, como ferramenta de mesma natureza que ciências e práticas como, por exemplo, a Psicologia, é bem diferente de examinar criticamente esse crescimento. Um texto publicado no site da revista The Atlantic em janeiro deste ano é um outro bom exemplo desse olhar mais apropriado, na minha avaliação. A matéria também destaca caraterísticas da astrologia que a fazem especialmente adequada à “era da Internet” e a um momento de grande incerteza e em que são valorizados os atalhos para ideias complexas, tornando-se assim relevante “para este tempo e este lugar”. Dentre outras passagens, é ilustrativa do tom do texto a reprodução da fala de um pesquisador sobre como a astrologia “oferece um vocabulário poderoso para capturar não apenas personalidade e temperamento, mas também os desafios e oportunidades da vida. Na medida em que se aprende facilmente esse vocabulário, ele pode ser atraente como uma forma rica de representar (e não de explicar ou prever) as experiências humanas e os eventos da vida, bem como de identificar alguns caminhos para lidar com eles”.

Em resumo, segundo o artigo da The Atlantic, a astrologia, em momentos de crise, oferece o conforto da possibilidade de imaginar um futuro melhor. Essa ideia de conforto, no entanto, me lembrou da crítica que o filósofo Theodor Adorno fez à astrologia em estudo publicado em 1953 com o título de “As estrelas descem à Terra”. No texto, Adorno associa a crença na astrologia – e, assim, em forças superiores que regeriam nosso destino – ao conformismo e, também, à ascensão do autoritarismo e de movimentos totalitários. Qualquer semelhança com o momento atual não é mera coincidência. Mas não é ridicularizando quem acredita em previsões astrológicas ou estampando um “ignorante” nos comentários de mais um post sobre o poder transformador dos astros que mudaremos a direção desses movimentos. Empatia e diálogo são o caminho, nunca é demais repetir, mesmo correndo o risco de sucumbir, eu também, aos clichês contemporâneos.

Boas leituras, e uma boa semana.

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