Anúncio sobre possível cura para o HIV ajuda a entender a pesquisa científica como processo

Em um futuro que agora sabemos não estar mais tão distante, quando o HIV e a AIDS forem rotineiramente curáveis, possivelmente nos lembraremos do dia 5 de março de 2019, quando o mundo ficou sabendo do segundo paciente livre do vírus após um transplante de medula para tratamento de câncer.

Naquela terça-feira, a prévia de um artigo foi publicada na Nature, concomitantemente ao anúncio na Conferência sobre Retrovírus e Infecções Oportunistas (CROI), em Seattle, nos Estados Unidos, realizado pelo pesquisador Ravindra Gupta, do University College London. A notícia já havia aparecido no dia anterior em alguns veículos de imprensa e, a partir do dia 5, tomou a mídia, incluindo a brasileira, com a Folha de S. Paulo e O Globo abordando o tema, dentre vários outros.

Em brevíssimo resumo, a pessoa agora conhecida como “Paciente de Londres” passou por transplante de células-tronco para combater um linfoma resistente à quimioterapia. O detalhe fundamental é que o doador possui uma mutação genética que o torna resistente ao HIV, condição presente em cerca de 1% das pessoas de origem europeia. Após o transplante, o Paciente de Londres manteve o tratamento com antirretrovirais por 16 meses e, após suspender o uso da medicação, já está há 18 meses sem sinais do vírus. O resultado animador veio 12 anos após o “Paciente de Berlim”, primeiro caso de cura do HIV após transplante de medula de doador resistente ao vírus.

No entanto, chama a atenção, no caso atual, o cuidado em não se falar em cura, mas sim em remissão, verificado em quase todas as notícias sobre o assunto. A cautela parece derivar da fala do próprio pesquisador responsável pelo anúncio, e reflete o cuidado de toda uma comunidade científica frustrada após repetidos casos de aparente remissão que acabaram não se confirmando como cura com a passagem do tempo. A cobertura também registra que o transplante de medula é um tratamento agressivo demais para ser usado em larga escala em pessoas sem câncer, e que a importância desses resultados positivos é indicar que o primeiro caso não foi só um acidente. Em outras palavras, temos agora uma “prova de conceito” que aumenta a esperança de que o HIV possa ser curado e indica um caminho promissor para a continuidade dessa busca.

Na mesma Conferência, inclusive, um terceiro caso foi apresentado, o do “Paciente de Düsseldorf”, que está há quatro meses sem os antivirais. Esses pacientes integram um grupo de 38 pessoas com HIV que passaram por transplantes e que os médicos esperam que possam resultar em casos de remissão. Além disso, ao redor do mundo, já se aproximam de 100 os pacientes em remissão, após iniciarem o tratamento com antirretrovirais bastante precocemente, dentre outras estratégias.

A complexidade dos caminhos trilhados pela pesquisa sobre o HIV e seu tratamento, juntamente com a cautela dos pesquisadores ao falar em cura, nos ajudam a lidar melhor com as notícias em outros campos da Saúde e, especialmente, aquelas que sugerem curas com cara de milagrosas. Recentemente, por exemplo, um vídeo sobre um tratamento revolucionário para o câncer de mama – a crioablação – viralizou e exigiu notas de esclarecimento dizendo que a técnica, ainda que existente, é experimental e indicada apenas em casos muito específicos. O vídeo tem alguns indicadores claros da informação sem qualidade, vários deles fáceis de identificar em uma pesquisa no Google, como, por exemplo, o fato dos primeiros sites que aparecem se chamarem “razoesparaacreditar” e “sonoticiaboa” e nenhum ser da Reuters, suposta autora da reportagem. Mas, além disso, sempre desconfie de curas que resolvem todos os problemas e superam os maiores desafios em um passe de mágica, que surgem de repente, sem uma história, como esta da luta contra o HIV, que em março de 2019 sem dúvida ganhou um capítulo muito importante, mas certamente não o último.

É muito bom estar de volta aqui em Mídia e Ciência. Boas leituras, e até a semana que vem.

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