Não existe caminho fácil para entender e resistir a discursos como o que nega os horrores da Ditadura

Na semana em que se comemorou o que nunca deveria ter acontecido, não faltaram tentativas de explicar a negação dos horrores da Ditadura Militar brasileira. O conhecimento acadêmico foi chamado ao apoio de algumas dessas tentativas e, ao menos em uma delas, foi muito mal utilizado, para justificar o injustificável, e tão simplificado que, o que deveria explicar, resultou em uma grande confusão.

Minha experiência como assessora de comunicação em uma instituição de pesquisa me mostra que uma prática comum em algumas redações é a formulação da notícia antes do processo de apuração dos fatos. Em outras palavras, que é bastante frequente o jornalista ligar na assessoria buscando um especialista que confirme a hipótese já formulada por ele. Aparentemente, este foi o caso da reportagem intitulada “Como a psicologia explica o porquê de haver pessoas que negam a ditadura”, publicada no site da Exame no dia 31 de março.

No texto, o repórter busca confirmar a hipótese de que são os mecanismos de defesa contra coisas desagradáveis que levam algumas pessoas a “esquecer”, ou relevar, os crimes cometidos pelo governo militar durante a Ditadura, e defender que a volta daquele regime poderia levar o País a uma realidade melhor que a atual. Ou seja, atribui ao indivíduo, a mecanismos restritos à dimensão pessoal, o processo de negação de fatos e construção de uma narrativa paralela.

O texto parte da constatação de que diversos brasileiros, assim como seu Presidente, não acreditam que o regime militar foi antidemocrático, para, sem preâmbulo, chamar o “médico neurologista Sigmunt [sic] Freud” a uma digressão sobre superego, id e ego. Se alguém conseguir entender, peço que compartilhe sua compreensão conosco por aqui… Outro momento que me causou grande surpresa, quase um susto, e me deixou com um ponto de interrogação sobre a cabeça, foi a chegada à conclusão de que devemos nos espelhar na Alemanha para enfrentar o cenário esboçado na reportagem. Ainda que consiga, com muita criatividade, imaginar a mensagem pretendida, não tenho dúvida de que ela não foi comunicada.

Além da junção de frases sem conexão umas com as outras, o texto é quase ingênuo quando caracteriza a violência da Ditadura com frases como a que reproduzo a seguir, para melhor entendimento: “Por aqui, diversas reportagens e outras formas de se expressar, como canções e filmes, foram censuradas. Logo, diversos problemas foram escondidos pelos militares durante o regime.”. “Probleminhas”, como justamente se manifestou Jair Bolsonaro sobre a tortura…

Por esta e outras construções, a matéria parece ser algo além da tentativa de dar verniz científico a uma hipótese preconcebida. Ela me parece expressar também a visão de mundo de seu autor – e/ou do veículo na qual foi publicada –, uma visão que caracteriza a política como inerentemente ruim e, assim, a nega, como se isto fosse possível. Um exemplo que concretiza essa visão é a frase a seguir: “Ou seja, é necessária uma real discussão sobre o assunto – e não, simplesmente, tudo descambar para uma briga política.”.

Mas, mesmo guiado por suas certezas, o repórter registra algumas ideias que nos ajudam a ampliar o olhar, especialmente a de que a negação acontece para que uma narrativa política não seja perdida. Se há algo com que a Psicologia nos ajuda é com o conceito de “viés de confirmação”, que, simplificando bastante, indica que tendemos a acreditar mais facilmente naquilo que corrobora o que já pensamos. E o que pensam aqueles que negam o caráter antidemocrático e violento do regime militar brasileiro? Primeiramente, que os tempos da Ditadura foram “bons tempos”, cheios de oportunidades que voltariam com a ordem e a disciplina do regime militar. É importante registrar que a origem desse pensamento não é apenas pessoal, ligada a memórias afetivas de uma infância perdida, mas sim, sobretudo, fruto da censura vigente durante a Ditadura, combinada com intensa propaganda governamental. Mais relevante ainda é registrar que essas pessoas também se identificam com o pensamento de que o autoritarismo e a violência podem ser legítimos, desde que voltados a um fim considerado nobre. E é aí que mora o maior perigo!

A Psicologia certamente tem bastante a contribuir para a compreensão do tempo em que vivemos, mas essa contribuição exige um pensamento muito mais complexo do que os clichês publicados na Exame. Temos, também, as Ciências Sociais, a História e outras áreas do conhecimento a quem recorrer, entre as quais devemos necessariamente estabelecer pontes. Além disso, é preciso disposição e coragem para pensar “o desconfortável e o difícil” e transformar esse pensamento em ação. É disso que nos lembra o legado de Hannah Arendt, segundo a análise de Lyndsey Stonebridge, professora de Humanidades e Direitos Humanos na Universidade de Birmingham, no Reino Unido. Para ela, a mensagem de Hannah Arendt para os nossos tempos seria para “[…] esperar e se preparar para o pior, mas pensar e agir para algo melhor. O impossível é sempre possível.”.

Pensemos! Boas leituras, e até a semana que vem.

Mídia e Ciência também disponível em podcast e vídeo