Corrida por vacina eficaz e segura contra a dengue envolve França, Estados Unidos, Japão e Brasil, com destaque brasileiro

No dia 6 de novembro, foram publicados na revista científica New England Journal of Medicine os resultados preliminares de testes clínicos com uma nova vacina contra a dengue, produzida pela farmacêutica japonesa Takeda. No Brasil, esses resultados receberam atenção de veículos midiáticos importantes, como o jornal O Globo e as revistas Superinteressante e Galileu, que publicaram textos otimistas, deixando em segundo plano as ressalvas evidentes em comentários publicados em outros países. Além disso, as notícias em Português ignoraram solenemente a existência de uma vacina nacional em desenvolvimento pelo Instituto Butantan, que já está na terceira e última fase de testes clínicos, com resultados muito promissores nas etapas anteriores.

Um desafio central no desenvolvimento de vacinas para a dengue é que existem quatro subtipos do vírus, e os anticorpos produzidos contra um deles podem tornar a infecção por um subtipo diferente muito mais grave. Em 2017, uma primeira vacina, desenvolvida pela Sanofi Pasteur (a Dengvaxia), virou um grande escândalo quando a farmacêutica alertou, depois de mais de 800 mil crianças terem sido vacinadas nas Filipinas, que ela favorecia esses quadros mais severos em pessoas sem contato anterior com o vírus.

Embora as notícias sobre a nova vacina, da Takeda, tenham reproduzido o dado de que ela apresentou eficácia de 80,2% nos testes clínicos – contra 59,1% da Dengvaxia –, a história não é exatamente esta. No caso do tipo 2 do vírus, este número foi até maior, de 97,7%, mas, para o tipo 3, foi de apenas 62,6%! A eficácia para o tipo um é de 73,7%, e ainda não há dados suficientes para a estimativa relativa ao tipo 4. Por isso, especialistas recomendam cautela, especialmente considerando o episódio da Sanofi, e, como registra o site Science News, são indispensáveis a transparência dos produtores e o questionamento da comunidade científica. A Takeda disse que divulgará novos dados já no próximo dia 23 e, também, que logo iniciará o processo para aprovar a comercialização em países em que a dengue é epidêmica, o que, obviamente, inclui o Brasil. Por isso, é importante ficarmos atentos, não para recusar a vacina, mas para tomar qualquer decisão com base em informação de qualidade.

No caso da vacina brasileira, ainda não é possível discutir a eficácia, já que os testes estão em andamento. No entanto, um indicador da expectativa criada com a divulgação de resultados preliminares é que, em dezembro do ano passado, a multinacional farmacêutica MSD (Merck Sharp & Dohme) fechou acordo com o Butantan no valor de, pelo menos, US$ 100 milhões (mais possíveis royalties), para acelerar o desenvolvimento do produto. A parceria, aliás, configura um caso ainda raro de transferência de conhecimento e tecnologia com o Brasil no polo que cede essa tecnologia, já que o País, tradicionalmente, é o importador. Mas, mesmo assim, os jornalistas aparentemente não lembraram dela ao incensarem a vacina da Takeda, embora o acordo com MSD tenha sido notícia no momento da sua celebração.

Além desse aparente complexo de vira-lata, as notícias recentes também são um pouco confusas e, às vezes, incompletas. Alguns veículos – como Terra e o Estadão, este último como conteúdo pago –, inclusive, reproduzem na íntegra o comunicado à imprensa (press release) da própria Takeda, de difícil compreensão, o que configura um trabalho jornalístico muito mal feito, se é que há algo de jornalismo nisso. Outros apenas reproduzem os textos de agências de notícias internacionais.

Temas de Saúde em geral exigem cuidado redobrado, e ainda mais o caso das vacinas, dada a epidemia de desinformação que vivemos, como registrou um estudo divulgado no Fantástico no último domingo, mostrando que 7 em cada 10 brasileiros já acreditaram em notícias falsas sobre vacinas. Dados especialmente assustadores desse levantamento, encomendado pela Avaaz e pela Sociedade Brasileira de Imunizações ao Ibope, é que, nos últimos quatro anos, o índice de vacinação contra o sarampo caiu de 96 para 57% no Brasil e, no caso da poliomielite, de 98 para 51%!

Dizer que todas as vacinas são desprovidas de riscos não seria verdade. No entanto, todas aquelas já consolidadas e disseminadas são bastante seguras. Além disso, cientistas e autoridades de Saúde Pública fazem um trabalho permanente em todo o mundo buscando, nessas composições cada vez mais seguras, até mesmo os menores e mais raros riscos. Como destaca um texto publicado na Nature ainda em 2011, esses esforços são ofuscados pelas fake news. Essa informação de má qualidade, quase mal intencionada, se junta, ainda segundo a Nature, ao fato das vacinas protegerem de doenças que se tornaram raras justamente por causa delas, cujos efeitos, portanto, estão esquecidos, como é o caso do sarampo. Assim, só o que ganha espaço no imaginário público são possíveis riscos das vacinas, mesmo que mínimos.

A desinformação, junto com essa distância dos impactos de doenças erradicadas no passado, dificulta um processo de decisão baseado na análise de custo-benefício. Como alerta a Avaaz, combater esse cenário é uma tarefa ao mesmo tempo de cada um de nós – no cuidado com as informações que compartilhamos –, dos canais em que as informações são compartilhadas e das autoridades, que devem realizar campanhas com informação de qualidade. Da mesma forma, a tomada de decisão sobre quais vacinas tomar, ou aplicar em nossas crianças, exige que nos informemos, mas também que consultemos profissionais de Saúde competentes e de nossa confiança, e que existam políticas públicas pensando nos impactos de cada decisão em termos globais. E, se existe algo inquestionável que todos esses atores devem ter em mente, é que, apesar de algum risco, a ameaça do abandono das vacinas é incomparavelmente maior.

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