Incidentes com animais silvestres exigem responsabilidade da mídia e de nós, o público

No dia 23 de outubro, um vigilante trabalhando no campus da UFSCar em São Carlos – próximo ao edifício que abriga atividades do Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia de São Paulo (IFSP) e, também, à área do Campus com vegetação de Cerrado – precisou chamar socorro devido a um ferimento em seu corpo e foi encaminhado à Santa Casa da cidade. Em uma época em que tanto se fala de fatos, seja por apreço a eles ou para negá-los, estas eram as únicas informações disponíveis e incontestáveis na madrugada daquela quarta-feira, quando a história aconteceu e veio a público. Não tínhamos, portanto, notícia, mas, mesmo assim, uma foi fabricada: o vigilante dizia ter sido atacado por uma onça parda, que viera até o seu local de trabalho, uma guarita, e sobre ele pulara como se fosse uma presa.

Uma máxima muito repetida entre jornalistas – e que já devo, inclusive, ter usado aqui – é que, se um cachorro morde uma pessoa, isto não é notícia, mas, se uma pessoa morde um cachorro, aí temos uma manchete. A história da onça pode ser considerada como algo no meio do caminho, já que, embora eu não tenha conseguido confirmar o dado exato, as informações que obtive são que, no Brasil, há somente de um a quatro (dependendo da fonte) ataques conhecidos de onças pardas a seres humanos, nenhum deles oficialmente registrado. No entanto, reitero, só o que tínhamos ao amanhecer do dia 23 era a alegação do homem ferido e nenhum vestígio do improvável predador, mas a pressa em comunicar fato tão inusitado falou mais alto que a prudência e o bom senso jornalístico.

Rapidamente, a ocorrência estava em vários jornais locais e, através do Estadão – que vende conteúdo para outros veículos –, chegou em muitas outras cidades, inclusive em estados distantes de São Paulo, como Paraná, Espírito Santo e Bahia, dentre outros. Apesar de questionar até mesmo a publicação da notícia – por preocupações que expressarei mais à frente –, devo considerar que a maior parte dos textos foram cuidadosos, com manchetes que destacam o que o porteiro disse, e não um ataque. Para ser mais clara, que escrevem “porteiro diz ter sido atacado”, e não “porteiro é atacado”. Com duas exceções: o sangrento São Carlos Agora, que estampa o título “Após ataque de onça, UFSCar solicita que sejam evitadas visitas ao Cerrado”, e, pasmem, o Estadão, em que lemos: “Vigilante fica ferido ao ser atacado por onça em universidade de São Carlos”. A diferença pode parecer sutil, mas este é um caso em que a escolha das palavras tem impactos importantes e, nesse sentido, é preciso comentar também a nota emitida pela Universidade na manhã daquela quarta-feira, falando que um ataque ocorrera, “provavelmente de onça parda”. Imagino que a intenção fosse dizer “possivelmente de onça parda”, mas a escolha feita, pelo “provavelmente”, foi lida como confirmação da origem do ferimento.

O Centro Nacional de Pesquisa e Conservação de Mamíferos Carnívoros (Cenap), ligado ao Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio), elenca entre os cuidados a serem tomados em eventuais conflitos entre animais silvestres e seres humanos que se evite o sensacionalismo na mídia e, assim, o pânico na população. Isto porque o impacto negativo sobre espécies muitas vezes já bastante ameaçadas pode ser brutal. Nesse sentido, na minha avaliação, a cobertura do caso da UFSCar não contribuiu em nada para uma melhor convivência.

O Cenap disponibiliza vários materiais mostrando, de um lado, o quão improvável é um ataque de onça, por serem animais muito assustados, cuja primeira reação é sempre se afastar do ser humano e, com base nisso, compartilha orientações, como, por exemplo, manter o local iluminado, carregar coisas que possam fazer barulho – como buzinas –, não andar sozinho em áreas de mata e, caso o encontro aconteça, não correr e, concomitantemente, deixar a rota de fuga livre para a onça. O Centro também destaca a importância de não predar os animais que são o alimento das onças, pois a fome as aproxima da área habitada por nós. Eu, da minha parte, acrescento que a maior parte dos acidentes com onças resulta na morte dos animais, atropelados, e não o contrário: de 2012 a 2017, um estudo da própria UFSCar mostra 67 onças atropeladas só na região de São Carlos!

Mas, afinal, como o porteiro se feriu? Não cabe a mim dizer, inclusive porque não sei, mas posso garantir que a probabilidade de ter sido a onça é praticamente nula, com base em evidências, e não somente no que acho ou deixo de achar. Se eu fiquei curiosa? Claro, mas me esforcei para transformar essa curiosidade em reflexão sobre os males que causamos quando nos deixamos dominar por sentimentos como este e, assim, não nos colocamos no lugar, tampouco nos importamos, com o outro, homem e onça.

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