Manifestações emocionadas sobre o clima exigem reflexão sobre possíveis efeitos colaterais

“How dare you?” é o novo “I have a dream”. Embora haja uma distância importante entre a afirmação de Martin Luther King em 28 de agosto de 1963 e o discurso de Greta Thunberg na abertura da Cúpula do Clima da ONU em Nova Iorque em 23 de setembro de 2019, ao menos um aspecto já me parece comum: a reprodução exaustiva de partes do discurso, que pode resultar na transformação da expressão “How dare you?” – como ousam? – em produto cultural icônico independente do tempo e do lugar em que foi dita originalmente.

Aqui no Brasil, uma outra manifestação sobre o mesmo tema também guarda semelhanças com o discurso de Greta Thunberg. Em vídeo divulgado em 19 de setembro, referências brasileiras na pesquisa sobre mudanças climáticas – como os cientistas Carlos Nobre e Paulo Artaxo, dentre outros – repetem o seu bordão, “nós avisamos”, com uma trilha sonora dramática e imagens apocalípticas de inundações, incêndios e outros desastres. O vídeo – uma peça publicitária que chama à participação na greve global pelo clima que aconteceria no dia seguinte – tem seus aspectos positivos, com o esforço de aproximar a fala de cientistas da linguagem corrente e a associação de alertas que podem soar abstratos a fatos concretos. No entanto, esses mesmos aspectos também podem ser preocupantes.

Muitas das dificuldades enfrentadas pela sociedade atual têm relação com um primado da emoção sobre a razão, que está na origem da polarização política, da negação do conhecimento especializado e das fake news, por exemplo. Considerando que tanto a exposição de Greta Thunberg quanto o vídeo dos cientistas brasileiros apoiam-se no apelo emotivo, me parece importante questionar se o reforço a uma realidade não torna ainda mais difícil a sua transformação. Será que já desistimos de compartilhar e dialogar sobre evidências científicas, e a única saída é um “eu avisei” como os que dizemos às crianças na expectativa de que aprendam com seus erros?

Martin Luther King inspirou a sua e várias gerações depois dele. Seu sonho ainda não virou a realidade, mas caminhamos significativamente nesta direção desde o seu discurso na Marcha de Washington, mesmo que não na velocidade e na intensidade desejadas. Eu espero que Greta Thunberg possa causar impacto semelhante, mas isto não acontecerá se não estiver claro que ela é também um fenômeno midiático que, como tal, exige reflexão. Em seu discurso, Greta abordou aspectos científicos e tecnológicos das mudanças climáticas, mas não foram estes os pontos destacados na repercussão desenfreada da sua fala na Cúpula do Clima. Nesta e em outras ocasiões, ela tem sido símbolo da raiva, do desencanto e da capacidade de reação da juventude mundial, mas não canal privilegiado de disseminação de informação e conhecimento, embora tente.

No dia seguinte a Greta Thunberg, Jair Messias Bolsonaro discursou na ONU. Parte da sua fala foi dedicada a apresentá-lo como defensor dos reais interesses dos povos indígenas, supostamente ameaçados por falsos ativistas ambientais a serviço de potências estrangeiras. Na plateia, uma suposta liderança indígena posava enrolada na bandeira brasileira, ao lado da esposa do Presidente. Contra este espetáculo que, sem sombra de dúvida, encontra o seu público, outras manifestações marcadas fundamentalmente pela emoção, se isoladas, podem resultar na intensificação daquilo que nos mantém, “nós” e “eles”, tão apartados e agressivos uns com os outros. Eu ainda tenho a esperança de que, se conseguirmos compartilhar o conhecimento e estimular o pensamento crítico de forma que essa nossa narrativa também possa tocar e mobilizar as pessoas, conseguiremos transpor esse fosso. Não nos resta muito tempo para descobrir como fazer isso, mas ainda não podemos jogar a toalha.

Também em Nova Iorque, foi anunciada a criação de um painel científico com foco na Amazônia, nos moldes do IPCC, painel intergovernamental voltado às mudanças climáticas. O primeiro relatório do novo grupo, com consensos científicos sobre principais riscos e melhores soluções para a Floresta, deve sair em 2020. Até lá, precisamos ter avançado, para que essas informações encontrem ouvidos mais alertas que os que deixaram de escutar o IPCC.

Mídia e Ciência também disponível em podcast e vídeo