Grandes projetos colaborativos encantam por seus resultados, mas também exigem atenção a riscos

O termo “Big Science” foi usado pela primeira vez na década de 1960, designando um tipo de colaboração científica que começou a aparecer no contexto da Segunda Guerra Mundial, com grande número de cientistas trabalhando em conjunto, em grandes instalações e com financiamento vultoso. Outra característica é que esses projetos trabalham na fronteira do conhecimento, buscando respostas a questões fundamentais e/ou avanços tecnológicos que podem transformar a nossa compreensão do mundo e a nossa própria existência. Os exemplos começam no projeto Manhattan – de construção da bomba atômica –, passam pelo programa Apollo – que nos levou até a Lua – e, mais recentemente, estão em iniciativas como o acelerador de partículas LHC, os telescópios gigantes e o projeto Genoma Humano, dentre várias outras.

Menos conhecidos são três empreendimentos recentes que, coincidentemente, foram notícia no Brasil nas últimas semanas. O primeiro não é exatamente um programa, mas sim um conjunto de projetos que buscam compreender melhor uma ilustre desconhecida, a Elevação do Rio Grande. Como nos conta Carlos Fioravanti – primeiro na revista Pesquisa Fapesp e, depois, também, no Estadão –, a Elevação é um platô submerso no Oceano Atlântico, próximo ao Rio Grande do Sul, que só agora começa a ser estudado, diante do interesse na exploração de recursos minerais como ferro e manganês existentes na região. Pesquisas realizadas em colaborações de cientistas brasileiros com pesquisadores dos Estados Unidos, Reino Unido e Japão resultaram em fortes evidências de que, em um passado distante, ainda fora d’água, a Elevação do Rio Grande fazia parte do grande continente Gondwana, unindo América do Sul e África. Neste caso, além dessa possibilidade de compreensão do passado, impressionam também os resultados referentes a um rico e frágil ecossistema marinho que mal se conhece e já corre risco de destruição.

É também sobre compreensão do passado que versa o segundo projeto: a Expedição 364, colaboração entre 11 países que, em 2016, extraiu um cilindro de sedimentos da cratera no México causada pelo impacto de um asteroide há 66 milhões de anos, que provavelmente levou à extinção dos dinossauros, dentre vários outros seres vivos. Como nos conta o El País, a partir deste cilindro os pesquisadores puderam reconstituir com detalhes o que aconteceu nas 24 horas seguintes ao impacto, fortalecendo a hipótese da grande extinção. Não é encantador pensar que, milhões e milhões de anos depois, um cilindro de terra pode nos contar tanto?

Por fim, em meados de setembro ganhou visibilidade no Brasil o projeto chamado “Human Cell Atlas” (HCA, Atlas de Células Humanas), a partir de um workshop realizado no Instituto de Ciências Biomédicas da USP no dia 10. O projeto é apresentado como uma iniciativa internacional para mapear todas as células do corpo humano, com participantes de todos os continentes – exceto a América Latina, motivo da apresentação realizada na Universidade de São Paulo. Na Folha de S. Paulo, a notícia sobre o evento anuncia que o “Brasil vai embarcar em uma das maiores jornadas científicas desde o Projeto Genoma Humano, no final do século 20” e que a iniciativa pode mudar a maneira de entender a vida e as doenças no ser humano. Este tom epopeico é uma primeira característica importante da cobertura feita, e é muito semelhante ao discurso sobre o projeto Genoma Humano que – sem negar uma gota sequer da sua relevância –, muito mais do que resolver todos os problemas da Humanidade, como inicialmente prometido, mostrou o quanto ainda desconhecemos.

E esse desconhecimento foi o segundo aspecto que me impactou quando consegui entender o projeto do Atlas. Apesar do uso da metáfora do “mapa” e, também, da tabela periódica, o projeto tem o objetivo não só de localizar espacialmente – no corpo humano e, também, nas diferentes populações da Terra, daí a importância da participação brasileira – os diferentes tipos de células, mas também de relacionar funções (comportamento) e morfologias (aparência) celulares distintas a diferentes perfis moleculares, relacionados, por exemplo, a quais genes ou proteínas um tipo de célula expressa. Eu não sei vocês, mas eu achava que os meus médicos sabiam um pouco mais sobre as minhas células do que aparentemente sabem, já que até mesmo o site do Atlas diz que, apesar das células serem a unidade mais fundamental da vida, “sabemos surpreendentemente pouco sobre elas”.

Se nos dois projetos anteriores eu destaquei tudo que foi possível conhecer do passado, no Atlas de Células Humanas o que temos é uma imensa ambição e a promessa de grandes transformações para o futuro. Os projetos associados à ideia de Big Science despertam esse assombro por aquilo que descobrem ou prometem conhecer, mas em geral eles também levantam, por suas dimensões, grandes questões éticas, hoje em dia frequentemente relacionadas à transparência de seus objetivos e resultados e, muito especialmente, à segurança e à privacidade de dados. Por isso, disparou um alerta a informação – registrada apenas na Folha – de que um dos principais financiadores do projeto é a Chan Zuckerberg Initiative (CZI), fundação de Mark Zuckerberg e esposa.

Segundo o próprio site da fundação, ela busca contribuir principalmente na construção de uma plataforma para coordenar os dados produzidos por cientistas em mais de 60 países e no desenvolvimento de novas ferramentas computacionais. Mesmo a CZI não sendo exatamente o Facebook, me parece importante ficar atento e buscar saber mais. Considerando o estrago feito com o mau uso de informações sobre o nosso comportamento, é fundamental cuidarmos do destino desse conhecimento sem dúvida relevante, mas também explosivo, sobre as células, tecidos e órgãos de
pessoas em todos os cantos do mundo.

Boas leituras, e até a semana que vem.

Mídia e Ciência também disponível em podcast e vídeo