Divulgação de novo estudo genético sobre sexualidade acende debate sobre responsabilidade social dos cientistas

“Maior estudo da história não encontra relação determinante entre genes e comportamento sexual”. “Não há um ‘gene gay’, mas estudo encontra ligações genéticas a comportamento sexual”. As duas manchetes – a primeira do El País e a segunda do Extra – aparentam, à primeira vista, noticiar dois estudos distintos, com conclusões contraditórias. Mas não: ambas se referem aos resultados da mesma pesquisa, publicada na Science em 29 de agosto e recebida com grande alarde pela mídia. O estudo – maior do tipo já realizado, com dados de quase meio milhão de pessoas – investigou possíveis associações entre fatores genéticos e a prática de relações sexuais entre pessoas do mesmo sexo. As diferentes interpretações de seus resultados, registradas nestas e em muitas outras manchetes, indicam a complexidade envolvida na realização, divulgação, e na compreensão do trabalho.

Em muitos dos títulos, topamos com o anúncio da “morte” do chamado “gene gay”, nascido em 1993 a partir de artigo publicado na mesma Science. Desde então, nenhuma outra pesquisa replicou essa associação direta entre uma região específica do genoma humano e a sexualidade da espécie, mas mesmo assim a ideia do gene gay persistiu, em parte devido justamente à atenção midiática que recebeu. Agora, a nova pesquisa viria enterrar de vez essa hipótese, ao mostrar que a influência genética, mesmo existente, resulta de centenas ou milhares de variantes genéticas, e é só uma parte da equação, junto com o ambiente e as experiências de cada pessoa. Mas, como demonstram as manchetes destacadas no início, a solução talvez não seja tão simples assim.

Um estudo publicado no The Journal of Sex Research em 2012, sobre a “vida do gene gay”, concluiu que mesmo os discursos negando sua existência favoreceram a sua permanência. A autora – Kate O’Riordan, pesquisadora da área de Estudos de Mídia – destaca, no trabalho, como a mídia ocupa um lugar na construção da Ciência e, sobretudo, a centralidade que o senso de responsabilidade por criar realidades deve ter tanto na prática científica quanto na comunicação da Ciência. Nesse sentido, os autores da pesquisa publicada agora foram exemplares, já que, antes da divulgação, realizaram atividades junto a instituições e grupos de ativistas pelos direitos da população LGBT e, a partir desse diálogo e de uma parceria com o grupo Sense about Science, desenvolveram um site próprio para a divulgação. No site, além de disponibilizarem o artigo, dados estatísticos, figuras e um glossário, destrincham a pesquisa nas seções “Quem somos”, “Por que fizemos a pesquisa”, “O que fizemos”, “Resultados e Limitações”, “Financiamento” e “De onde vieram os dados”.

Mesmo com todo esse material disponível, a maior parte das matérias que eu li, em veículos brasileiros ou de outros países, me pareceram muito superficiais, confusas ou, em vários casos, ruins mesmo. Exemplar me pareceu o texto de Reinaldo José Lopes, publicado na Folha de S. Paulo. Mas, mesmo diante de alguns bons textos e das precauções e evidente compromisso social dos autores do estudo, para mim restou uma questão não respondida: por que fazer a pesquisa afinal? A mesma questão foi apresentada a representantes do grupo por outros jornalistas, e as respostas vieram sempre na negativa: porque estudos anteriores não eram robustos o suficiente; porque se eles não fizessem outros o fariam, possivelmente sem o mesmo cuidado; ou porque impedir a realização de estudos dessa natureza seria confirmar o assunto como tabu, reforçando a estigmatização. Não existe, será, uma resposta positiva?

No site do Broad Institute, ao qual alguns dos autores do estudo são vinculados, encontramos um conjunto de ensaios desses pesquisadores e, também, de colegas contrários à realização da pesquisa, em mais um exemplo de compromisso com a transparência e a promoção do debate. Em um deles, Benjamin Neale, um dos autores, que se identifica como homossexual, afirma que descrever o mundo com a máxima acurácia é parte do que define um cientista e diz esperar que os resultados do estudo fortaleçam argumentos para a proteção legal da população LGBTQIA+. Em outro, seu colega, Steven Reilly, pós-doutorando crítico à pesquisa, defende que ela traz muito risco para pouca recompensa, e justifica: “Em uma sociedade sem discriminação, compreender a biologia da orientação sexual seria uma meta razoável, e seriam baixos os riscos das descobertas. Os cientistas já sabiam antes do estudo que o comportamento sexual tem um componente hereditário forte e é influenciado por vários genes. Na melhor das hipóteses, a nossa compreensão permanece essencialmente a mesma […]. Na pior, o público fica mal informado e confuso sobre porque estudar essa característica em detrimento de milhares de doenças sérias, e isso tudo enquanto um grupo historicamente marginalizado é deixado mais vulnerável.”.

Compartilhando os receios de Steven Reilly e desejando que a esperança de Benjamin Neale se concretize, destaco sobretudo a importância de existir esse debate público, para que cada vez mais avancemos no sentido do engajamento da sociedade com o conhecimento científico e dos cientistas com a sociedade. Não só em tempos de crise como o que vivemos, mas principalmente agora, este me parece o melhor caminho.

Boas leituras, e até a próxima semana.

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