Crise no financiamento da Ciência exige compreensão de causas e consequências

É com grande angústia que volto a esta Mídia e Ciência depois de uma breve pausa, poucas semanas em que o volume de más notícias para a Ciência brasileira foi maior do que em meses, anos, quiçá décadas da história do nosso país. Vivemos um surto de sarampo – resultado, em parte, da negação do conhecimento científico sobre vacinação –; tivemos o presidente de um instituto de pesquisa exonerado por divulgar dados que não agradaram a Presidência da República; cresce o número de dirigentes universitários nomeados contra a vontade da comunidade acadêmica, expressa em processos eleitorais; somem os recursos internacionais destinados à preservação da Amazônia. A lista não está completa e, infelizmente, deve seguir crescendo, mas, dentre todas essas notícias, uma se destaca, por atingir direta e fatalmente a estrutura que sustenta a prática científica em todas as áreas do conhecimento: o anúncio da iminente “falência” do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq).

A crise não é exatamente uma surpresa; mas, no último dia 15, o alarme soou em seu volume máximo quando o CNPq comunicou a suspensão de novas indicações de bolsistas, em um total de 4,5 mil bolsas de iniciação científica, mestrado e doutorado. No mesmo momento, compartilhou a previsão de que não haja recomposição orçamentária e, assim, sejam suspensas a partir de setembro outras 84 mil bolsas, já implementadas. A situação vem sendo amplamente noticiada por vários veículos, inclusive internacionalmente, na Nature e na Science. No dia 16, foi capa da Folha de S. Paulo em sua versão impressa, que trouxe matéria mais geral, sobre o risco de paralisia dos programas federais como um todo.

Na Folha, a suspensão das bolsas aparece como exemplo, junto com a interrupção no serviço de emissão de passaportes. Esse conjunto inusitado – bolsas de pesquisa e emissão de passaportes – me alertou de que talvez não seja trivial compreender o real impacto da crise no CNPq. Passaportes são, sem dúvida, fundamentais, e dizem respeito ao direito fundamental de ir e vir. No entanto, se interrompemos hoje a sua confecção, amanhã já podemos retomá-la, se os recursos voltarem. O mesmo não acontece com a produção de conhecimento: suspender as bolsas significa interromper pesquisas em andamento, deixando de concluí-las e, além disso, jogando fora o dinheiro já investido; significa também deixar de formar pessoas e perder as já formadas para outros países; e, por fim, deixar milhares de pessoas sem salário de um dia para o outro.

O CNPq, criado em 1951, foi o primeiro órgão governamental dedicado especificamente ao fomento do desenvolvimento científico, no contexto mundial de identificação da relevância – e do poder – da Ciência após a Segunda Grande Guerra. Desde então, foi pilar do estabelecimento de um sistema nacional de Ciência e Tecnologia e, em 2015 (ano dos últimos dados disponíveis no site do CNPq), era responsável por mais de 100 mil bolsas anuais – sendo quase 40% de iniciação científica e 20% de mestrado e doutorado –, além do fomento a projetos de produção e difusão do conhecimento com diferentes configurações. Os prejuízos a este pilar demandarão décadas – e não dias – para serem revertidos, como destacam os vários manifestos publicados nos últimos dias, dentre eles os de sete ex-presidentes do Conselho, de seu Conselho Deliberativo, dos seus funcionários, além de abaixo-assinado que já conta com quase 700 mil signatários (em 21 de agosto, quando este número segue crescendo).

Um outro aspecto da cobertura sobre o CNPq ao qual é importante prestar atenção é a associação imediata à falta de dinheiro e, a partir daí, à urgência da Reforma da Previdência e do enxugamento do funcionalismo público. Não sou habilitada a debater aqui essas diferentes alternativas, mas tenho clareza de que é relevante compreendermos justamente que há alternativas, que são escolhas, e não caminhos exclusivos e inexoráveis. A mesma Folha de S. Paulo registrou que, em um cenário de tantos cortes, o Governo já gastou R$ 1,6 milhões em medalhas condecorativas somente nos primeiros meses de 2019, e vários outros veículos ironizaram o fato do Ministro Paulo Guedes ter usufruído de uma das bolsas que agora quer cortar. Estas são apenas curiosidades de menor importância, mas que lembram que decisões orçamentárias vão muito além do volume de recursos existente e são tomadas a partir de visões de mundo e projetos de País que informam as escolhas feitas.

O Ministro da Educação, por exemplo, reconheceu que parte significativa do dinheiro bloqueado na sua pasta deve ser destinado a emendas parlamentares usadas nas barganhas da Reforma da Previdência no Congresso Nacional. Logo após o anúncio da interrupção das bolsas, também começaram a se multiplicar informações sobre mudanças nos critérios usados para distribuir recursos financeiros entre as universidades federais e, também, para o financiamento da pós-graduação, com o retorno do discurso sobre a pouca utilidade das Ciências Humanas e a ênfase a indicadores próprios da iniciativa privada e estranhos à missão da universidade pública. Fala-se, cada vez mais, na possibilidade de extinção do CNPq. Assim, a equação não é tão simplória ou transparente como gostaria de fazer crer o Presidente da República, ao dizer que não está sendo malvado, só não tem dinheiro.

É fundamental que a população saiba do que está abrindo mão se não defender o CNPq e a pesquisa brasileira. Mas, para tanto, é necessário, como já ponderei outras vezes, irmos além de palavras de ordem, súplicas por votos de confiança e reiterações do valor da Ciência: é preciso contar, explicar, e debater. As pessoas têm o direito de querer defender o CNPq, não a obrigação. Elas precisam conhecer e, mais do que isso, ter a chance de participar da Ciência para que o povo, junto com a comunidade acadêmica e científica, não se cale, como previu Ricardo Galvão em sua volta à USP após ser exonerado do INPE.

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