Pesquisas de percepção pública da C&T reiteram dissonâncias entre atitudes e conhecimento e a necessidade de olhares mais específicos e qualitativos

Na última semana, foram divulgados os resultados de duas novas pesquisas de percepção pública da Ciência, ambas em suas edições de estreia. No dia 19 de junho, foi divulgado o “Wellcome Global Monitor 2018”, levantamento realizado pelo fundo britânico Wellcome – voltado à área da Saúde – em parceria com a Gallup, envolvendo 140 mil pessoas em 144 países. No dia 24, o Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia em Comunicação Pública da Ciência e Tecnologia, coordenado a partir da Fiocruz, no Rio de Janeiro, divulgou o seu levantamento, realizado junto a 2,2 mil jovens entre 15 e 24 anos de 21 dos 26 estados brasileiros, além do Distrito Federal.

Pesquisas de percepção pública da Ciência vem sendo realizadas já há algum tempo em diferentes países, em geral buscando indicadores como o interesse das pessoas no conhecimento científico, níveis de conhecimento de diferentes conceitos científicos, as principais fontes de informação e, também, atitudes e comportamentos em relação à Ciência e à Tecnologia. Continuamos, no entanto, com dificuldades na compreensão de possíveis associações entre esses diferentes indicadores, já que, muitas vezes, as conclusões parecem paradoxais, como quando, por exemplo, verificamos que mais conhecimento não resulta em mais confiança ou maior apoio à atividade científica.

A pesquisa do Wellcome foi noticiada no Brasil pelo jornal O Globo e pelo Bem Estar, também da Globo. O jornal destacou que um terço dos brasileiros (35%) desconfiam da Ciência. O número pode gerar preocupação em um cenário em que é fundamental o apoio popular às instituições e às práticas de C&T. No entanto, quando olhamos em detalhes as respostas às diferentes questões apresentadas, vemos que a desconfiança em relação ao governo (58%), a curandeiros tradicionais (56%) e a jornalistas (17%) é maior. Por outro lado, a porcentagem de pessoas que declaram confiar muito na Ciência, mesmo que baixa, só não é maior que a daquelas que confiam em profissionais da área da Saúde, o que pode estar, antes de mais nada, nos mostrando um quadro de desconfiança generalizada em tudo e todos. Outros dados destacados também ganham novos significados quando olhamos para os detalhes, como, por exemplo, o registro da baixa percepção de benefícios trazidos pela produção científica ao País – que, em uma avaliação rápida, me parece muito mais uma consciência da desigualdade reinante no Brasil do que um sentimento de inutilidade da Ciência. Preocupantes são, sem dúvida, as estatísticas mostrando que 47% dos brasileiros indicaram alguma discordância entre a Ciência e a sua religião e, mais do que isso, que 75% escolhem a religião quando isto é necessário. A escolha do adjetivo “preocupante”, neste caso, se dá não como crítica à crença religiosa, mas sim pela compreensão de que é urgente ampliar o debate sobre diferentes formas de olhar para o mundo e sobre os distintos papéis e modos de funcionamento desses olhares, não necessariamente concorrentes, desde que acionados nas situações pertinentes.

A pesquisa realizada no Brasil, por sua vez, ganhou reportagem extensa no Jornal da USP, que mostra atitude positiva da juventude em relação à Ciência, mas baixo conhecimento dos conceitos científicos. Como registrado antes, essa dissonância entre atitude e conhecimento aparece comumente em pesquisas de percepção pública. Na notícia sobre o levantamento do Wellcome publicada na Science, por exemplo, é destacado como, na França, onde foi verificado o maior ceticismo em relação à Ciência, é a ampliação do conhecimento que leva ao questionamento. O periódico registra, a partir desse debate, que um público vigilante pode ajudar a pressionar cientistas a considerarem os impactos sociais das suas atividades, conclusão fundamental na reflexão sobre quais devem ser os principais objetivos das atividades de divulgação científica. Voltando ao levantamento brasileiro, das pessoas entrevistadas, 71% concordaram com a afirmação de que o conhecimento confere poderes que tornam os cientistas perigosos mas 68% dessas mesmas pessoas acreditam que os governantes devem seguir as orientações dos cientistas. Primeiro, devo registrar que, do meu ponto de vista, ambas as afirmações têm problemas. A primeira parece indicar um medo generalizado da Ciência – do desconhecido? –, enquanto a segunda denota uma visão alienada, não crítica, de processos decisórios envolvendo o conhecimento científico –  que, hoje, está presente em quase todas as decisões que precisam ser tomadas cotidianamente. Além disso, não podemos deixar de notar que as duas afirmações são contraditórias – afinal de contas, por que delegaríamos decisões a pessoas que julgamos perigosas?

Entender estas e outras contradições, sempre presentes em pesquisas de percepção pública da Ciência, me parece indispensável à compreensão de como podemos avançar no sentido do combate à exclusão da maior parte da população da cultura científica. A existência à margem da possibilidade de falar sobre Ciência é um fator importante também na exclusão do acesso a grande parte dos benefícios advindos do desenvolvimento científico, enquanto os impactos negativos são, em geral, democraticamente distribuídos. Assim, é urgente, de um lado, irmos além de estudos quantitativos de percepção pública, avançando cada vez mais também em pesquisas qualitativas de aspectos específicos. Por outro lado, já me parece evidente a necessidade de democratizar a possibilidade de diálogos informados pelo conhecimento científico, diálogos estes que pressupõem também o questionamento e a crítica e, assim, exigem ir além do apelo pelo apoio quase incondicional às atividades de pesquisa, estabelecendo compromissos com estratégias de comunicação da Ciência que confiem na capacidade de entendimento das pessoas e, com base nessa confiança, pensem e experimentem diferentes formas de superar desafios que, em parte, já aparecem nas estatísticas das diferentes pesquisas de percepção pública da Ciência.

Boas leituras! Mídia e Ciência agora entra em recesso, e nós voltamos a nos encontrar em agosto. Até lá!

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