Consulta pública sobre regulamentação do cultivo e da produção de medicamentos no Brasil é oportunidade de se informar sobre o tema

Em clima de grande expectativa, a diretoria da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) aprovou no dia 11 de junho duas propostas que podem resultar na regulamentação da produção e uso de derivados da Cannabis sativa – a maconha – para fins medicinais e científicos. As propostas devem, agora, passar por consulta pública com duração de 60 dias, com possibilidade de receberem sugestões de alteração antes da aprovação final pela Agência. Considerando as primeiras repercussões, não será pequena a movimentação no site da Anvisa nos próximos dois meses.

A composição do grupo de pessoas e entidades aprovadas para pronunciamento na reunião da Anvisa dá uma boa ideia dos interesses envolvidos na questão em debate: majoritariamente representantes de associações de pacientes, familiares e outros ativistas favoráveis à legalização, seguidos de integrantes da indústria farmacêutica, acompanhados de um pequeno punhado de pesquisadores. Mas, além dos interesses econômicos, científicos e de Saúde da população diretamente afetada, é importante olharmos também para a posição do Governo e para os aspectos morais e sociais da controvérsia.

O lento percurso de regulamentação do uso medicinal de derivados da maconha no Brasil não começou agora. Em 2015, o canabidiol (CBD) foi retirado da lista de substâncias de uso proscrito no País e, em 2016, foi autorizada a prescrição de remédios à base de canabidiol e de THC. O primeiro remédio foi registrado no País em janeiro de 2017, mesmo ano em que uma associação paraibana foi autorizada pela Justiça a cultivar maconha para fins medicinais e a erva foi reconhecida como “planta medicinal”. Em grande medida, esses passos foram dados sob a pressão de familiares, pacientes e suas associações e, na mídia nacional, boa parte do material que encontramos sobre a temática é caracterizada por relatos de histórias de uso bem sucedido de CBD ou THC, ou do calvário até a obtenção das substâncias. Uma das justificativas da Anvisa para a regulamentação é, inclusive, reduzir o elevado número de ações judiciais para importação e para produção doméstica da maconha.

No entanto, não deve ser subestimado – e precisa ser analisado com atenção – o papel da indústria farmacêutica, que tem clareza do imenso potencial desse mercado já em exploração em outros países, com destaque aos Estados Unidos. O jornal Folha de S. Paulo é um dos que vem acompanhando o tema com mais regularidade e, assim, é significativo que boa parte dos registros tenha acontecido na coluna Painel S. A., de Economia. A coluna, inclusive, registrou o descontentamento do setor empresarial com o excesso de exigências na regulamentação proposta, assim como estão descontentes as associações de pacientes com a previsão de que apenas empresas sejam autorizadas a cultivar. Também é esperada resistência do Governo Federal e, particularmente, do Ministro da Cidadania, Osmar Terra, que já andou criticando a Anvisa, com a qualidade de argumentos que lhe é característica.

O que pouca gente sabe é que o Brasil é pioneiro em pesquisas com canabidiol para tratamento de epilepsia, um dos usos já consolidados da maconha para fins medicinais. Apesar disso – e do discurso científico estar sendo usado com fartura no debate, tanto para legitimar a regulamentação quanto para alegar que não existem evidências que a justifiquem –, é quase impossível encontrar, na mídia em Português, materiais esclarecedoras sobre a pesquisa já realizada. Mais uma vez, a imprensa reproduz a polarização e o maniqueísmo reinantes, apresentando o debate nas vozes dos que combatem a “erva do diabo” e, de outro lado, daqueles que supostamente estão interessados apenas no “barato”, dos “maconheiros”. Falta, na minha avaliação, uma revisão cuidadosa das pesquisas e das evidências já existentes que, embora ainda sejam insuficientes para boa parte das enfermidades, sem dúvida indicam um imenso potencial que precisa ser urgentemente explorado, com responsabilidade e compromisso primordial com o interesse público. Ainda está em tempo, considerando a possibilidade – e a grande importância – da participação informada de diferentes segmentos da sociedade na consulta pública que deve se iniciar em breve.

Para concluir, deixo como dicas de leitura, que encontrei na minha busca por mais informações sobre o tema, a plataforma Sechat – em Português, reunindo principalmente notícias sobre o assunto, com viés para a legalização – e, especialmente, matéria extensa da revista do The New York Times, que apresenta a trajetória histórica do consumo de maconha (situando inclusive a associação entre criminalização e preconceito racial), comenta o lugar que vem sendo ocupado pelos movimentos de pacientes (citando efeitos sobre os estudos formais do que chama de “aplicações vernaculares” da maconha), explica como o canabidiol atua no organismo e, também, situa os diferentes estudos em andamento, indicando porque os derivados da maconha são compreendidos como extremamente promissores em diferentes condições.

Boas leituras, e até a semana que vem.

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