Ações da Justiça Eleitoral em universidades colocaram autonomia novamente em evidência, mas você sabe o que ela significa?

No dia 23 de outubro, a terça-feira antes do segundo turno das eleições, teve início uma série de ações da Justiça Eleitoral em pelo menos 17 universidades públicas ao redor do País, muitas vezes com a participação de força policial, que determinaram a retirada de faixas e cartazes, a suspensão de eventos, e chegaram, até mesmo, a questionar conteúdo abordado em sala de aula. As ações motivaram inúmeras notas de instituições nas áreas de Ciência e Educação em defesa da democracia e da liberdade de pensamento e, também, notícias em quase todos os principais veículos de imprensa no Brasil e, também, em publicações internacionais, inclusive a Nature.

Várias dessas manifestações e publicações mencionam – e, em alguns casos, defendem – a autonomia universitária e os riscos que intervenções como estas e outras que vêm se multiplicando nos últimos dias representam. A autonomia universitária, aliás, me parece um valor disseminado na opinião pública brasileira, resgatado com alguma periodicidade, ainda que, de outro lado, imagino que seu sentido talvez não seja familiar a boa parte das pessoas. Não é trivial falar desse sentido, já que o próprio conceito de autonomia universitária é um conceito em disputa.

A perspectiva histórica, no entanto, nos ajuda a compreender, ainda que em linhas gerais, do que falamos quando mencionamos a autonomia. Já no surgimento da instituição universitária, com as primeiras universidades medievais europeias, a preocupação com a autonomia estava presente, para que o conhecimento pudesse ser produzido e disseminado sem o controle da Igreja e do Estado. Outro marco fundamental está no século XVII, com a revolução copernicana e a crítica de Galileu à autoridade e à tradição – não só da Igreja e do Estado, mas também de visões de mundo pregressas, com as de Aristóteles, Euclides e, é claro, Ptolomeu com seu modelo geocêntrico. O trabalho de Galileu, aliás, está no cerne da rejeição à autoridade como critério de verdade na produção do conhecimento, que, por sua vez, é a base da revolução que deu origem à Ciência Moderna.

No Brasil, legislou-se pela primeira vez sobre a autonomia universitária na Constituição de 1988, que, em seu Artigo 207 o estabelece que universidades e outras instituições de pesquisa científica e tecnológica gozarão de autonomia didático-científica, administrativa e de gestão financeira e patrimonial. Desde então, muita luta pela concretização da garantia constitucional foi empreendida, bem como foram travadas muitas discussões sobre a abrangência e os limites do dispositivo constitucional. Autonomia administrativa e de gestão, por exemplo, é algo de que só gozam plenamente as universidades estaduais paulistas, com o orçamento próprio e a liberdade de aplicação desses recursos – insuficientes, diga-se de passagem – que têm garantidos desde 1989.

O que é inquestionável, no entanto, é a relevância da autonomia didático-científica na produção do conhecimento, reforçada pelo Artigo 5o da Constituição que, em seu inciso IX, estabelece a liberdade de “expressão da atividade intelectual, artística, científica  e de comunicação, independentemente de censura ou licença”. Autonomia didático-científica, liberdade de expressão da atividade científica, liberdade de pensamento e liberdade de cátedra são, com alguma generalização, nomes diferentes para a mesma preocupação em garantir a pluralidade de ideias e concepções, a possibilidade de questionamento e transformação do pensamento hegemônico e a proteção contra restrições impostas pelo poder vigente, sem o que não teríamos, hoje, desde obras fundadoras como o próprio heliocentrismo e as teorias da Evolução e da Relatividade, até resultados mais práticos como políticas públicas para a regulação das indústrias do tabaco e de agrotóxicos, dentre outros inúmeros exemplos possíveis.

É o debate povoado por diferentes visões, depuradas ao longo do tempo no processo de revisão por pares em direção a um saber impessoal, que confere legitimidade, relevância, pertinência, universalidade, abrangência e, também, utilidade ao conhecimento científico e tecnológico. Assim, na defesa de bem público tão fundamental, é preciso estar atento para não permitir sequer a menor brecha, que, logo, poderá se transformar em fenda intransponível.

Boas leituras, e até a próxima semana.