Publicação de artigos falsos para atacar estudos identitários não contribui com comportamento mais racional

No dia 12 de outubro, a Folha de S. Paulo publicou notícia sobre o que, internacionalmente, ficou conhecido como o trote dos “estudos queixosos” (grievance studies). A matéria explica como três autores (uma editora, um matemático e um filósofo) fabricaram 20 artigos falsos com supostas conclusões – boa parte delas absurdas – de estudos de gênero, sexualidade, raça e similares, dos quais sete foram aceitos para publicação em revistas especializadas dessas áreas. O objetivo foi, segundo esses autores, provar o viés político de determinadas correntes de pensamento, o que comprometeria a qualidade e a veracidade do conhecimento que produzem.

No Brasil, pelo que eu pude verificar, a Folha foi o único veículo a noticiar o assunto. No entanto, internacionalmente e, particularmente, nos Estados Unidos, o tema foi objeto de muita controvérsia. E este me parece um problema importante no texto da Folha: simplificar demais e não retratar, nem de longe, o rol de tensões, disputas e conflitos que estão além da superfície dessa questão. A generalização começa já no título, que fala em “viés nas ciências humanas” e, embora aparentemente tenha havido um cuidado editorial em destacar as críticas ao “trote” já no subtítulo, essas críticas recebem só metade do espaço dedicado aos acusadores, e o espaço inferior do texto, ao qual sabemos que a maior parte dos leitores sequer chega.

São inúmeros os aspectos que merecem ser questionados, e não posso abordar todos em profundidade por aqui. Um deles é o viés ideológico dos próprios acusadores, cujo objetivo principal é atacar políticas e movimentos identitários como #MeToo e Black Lives Matter, que têm base em estudos das áreas atacadas. Outro é a disputa epistemológica – que não é nenhuma novidade – entre as chamadas “ciências duras”, como a Física, a Química e as Ciências Biológicas, e as pesquisas nas áreas da Educação, Ciências Humanas e Sociais, em torno dos critérios de objetividade, do conceito de verdade e do próprio status de Ciência. Podemos falar também de diferentes fragilidades no universo dos periódicos científicos, que certamente não se restringem às revistas das Ciências Humanas e abrangem, além de limitações inerentes ao próprio processo de revisão por pares, as práticas comprovadamente fraudulentas ou predatórias de algumas publicações. E temos ainda a chamada “crise de reprodutibilidade” das pesquisas científicas, especialmente no campo biomédico, que diz respeito às dificuldades para reproduzir os resultados encontrados em boa parte dessas pesquisas, o que pode indicar, dentre outras coisas, a baixa confiabilidade desses resultados. Estes e outros debates estão em vários textos publicados na imprensa estrangeira, dentre os quais eu recomendo artigo publicado no Vox.

Eu, aqui, destaco o fato dos artigos falsos apresentarem não só argumentos artificialmente fabricados, mas dados totalmente inventados. Como expressa o mesmo artigo do Vox, todo o sistema de publicação científica e revisão por pares depende de um certo nível de confiança, de crença na “boa fé e honestidade” das pessoas participantes. Existem mecanismos de autocorreção da Ciência que levam à identificação a posteriori da publicação de dados falsos – por exemplo, as já mencionadas falhas no momento em que se tenta reproduzir os experimentos realizados. Porém, se editores e pareceristas tiverem de duvidar da veracidade dos dados reportados em todos os artigos que recebem, podemos desistir já do empreendimento científico, que assim se torna inexoravelmente inviável.

A coisa toda me parece ainda mais complicada dada a sua realização no momento em que vivemos – particularmente, mas não exclusivamente, no Brasil –, que combina ataques às minorias e às evidências científicas, além do reinado da desinformação e das notícias comprovadamente falsas. Na mesma semana em que lemos, por exemplo, sobre uma nova ferramenta do Facebook que coloca notícias em contexto para ajudar na avaliação da sua qualidade e, também, sobre esforços do Ministério da Saúde para combater informações falsas na sua área de atuação, é dada visibilidade e relativa importância a uma ação que se valeu justamente da falsificação para denunciar a suposta não neutralidade de um campo “rival”. Se cada vez mais nos acostumarmos à mentira e à manipulação de informações e, mais do que isso, entendermos que vale tudo no combate àquilo de que discordamos, muito em breve não haverá mais caminho de volta ao diálogo que tantos discursos, muitos deles vazios, têm pregado nos últimos dias.

Boas leituras, e até a semana que vem.

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