Notícias sobre tratamento da dor trazem questão do acesso a opiáceos para o contexto brasileiro

A Sociedade Brasileira de Médicos Intervencionistas em Dor realizou seu congresso de 19 a 22 de setembro, na cidade de Campinas (SP), e o evento rendeu algumas notícias, incluindo reportagens em dois grandes jornais de circulação nacional, o Estadão e O Globo. Os textos – que não são exatamente sobre o Congresso, mas  sobre dor e seu tratamento – ilustram um dos processos pelo qual um assunto pode virar pauta: no caso, a partir da realização de um grande evento e, provavelmente, do trabalho de uma assessoria de imprensa influente. Ilustram, também, como um fato, olhado a partir de diferentes pontos de vista, pode gerar histórias completamente diferentes.

A matéria do Estadão traz uma solução: intitulada “Medicina aposta em novas técnicas para tratar paciente com dor crônica”, apresenta dois grupos de novas abordagens terapêuticas da dor, a neuromodulação e a medicina regenerativa, avaliadas como muito promissoras. Já O Globo apenas registra esses tratamentos como uma possibilidade emergente, mas tem foco em um problema: o subtratamento da dor no Brasil, com uso insuficiente de analgésicos opiáceos, que são as substâncias consideradas mais adequadas ao tratamento de dores crônicas. Segundo a matéria, este é um problema histórico que tende a se agravar diante da crise dos opiáceos nos Estados Unidos.

A menção à crise dos opiáceos me chamou especialmente a atenção pois, há aproximadamente um ano, eu vinha acompanhando a cobertura do problema nos principais jornais brasileiros, intrigada, primeiramente, pela atenção recorrente ao tema e, sobretudo, pela quase inexistência de um paralelo com o contexto brasileiro. Para quem não acompanhou, em outubro do ano passado a chamada “epidemia de opiáceos” foi declarada emergência de saúde pública nacional nos Estados Unidos, frente a indicadores avassaladores: em 2016, as overdoses foram a principal causa de mortes no País, com 64 mil óbitos, sendo 53,3 mil por abuso ou mal uso de analgésicos opiáceos – dentre elas, a do astro Prince – e pelo consumo de heroína e outras drogas opiáceas ilegais.

No Brasil, a presença dos opiáceos ilegais é ínfima em comparação com outras drogas com maior distribuição e menor preço no País, como a cocaína e, principalmente, o crack. No caso das substâncias legais, a questão é mais complexa. Embora, no caso dos Estados Unidos, as prescrições legais de opiáceos sejam compreendidas como uma das principais causas do problema do vício nessas substâncias, a ausência dos analgésicos tem um lado perverso, como vemos na matéria de O Globo, que fala em 77 milhões de brasileiros com dor crônica e mais alguns milhões com episódios agudos de dor. Na reportagem, especialistas falam em “opiofobia” causada pela falta de informação de médicos e pacientes, bem como em burocracia excessiva para a prescrição de opiáceos. O que o jornal não aborda é que a prescrição de opiáceos vem crescendo no Brasil – apesar de ainda ser baixa –, um alerta da necessidade de políticas e procedimentos que evitem o caminho da falta de alívio para o vício epidêmico.

A questão dos opiáceos também traz à tona a desigualdade no acesso a serviços de saúde no Brasil e no mundo. Como destaca matéria publicada no Nexo, por exemplo, enquanto países desenvolvidos como os EUA, Canadá e Austrália consomem muito mais opiáceos do que o considerado necessário, é nos países pobres que milhões sofrem pela falta de acesso a medicamentos para combate a dor. Também há narrativas mais ou menos reforçadoras da desigualdade. No caso das nossas duas matérias iniciais, por exemplo, o Estadão aborda tratamentos de ponta – alguns inclusive ainda em fase experimental – disponíveis apenas para alguns privilegiados, enquanto O Globo traz um olhar mais voltado à Saúde Pública. No caso dos Estados Unidos, um artigo publicado no The Guardian analisa como a disseminação entre a população branca de um problema que sempre afligiu a população negra levou à classificação das overdoses de opiáceos como epidemia e à distinção entre “viciados”  – negros – e “vítimas” – brancas.

Há, portanto, muito a pensarmos sobre o assunto aqui no Brasil, e é bom que comecemos a ter subsídios para fazê-lo a partir de vários pontos de vista – e antes que seja tarde demais.

Boas leituras, e uma ótima semana.

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