Mal utilizados, agrotóxicos e “checagem de fatos” têm em comum os efeitos negativos que causam

Agrotóxicos e fake news – e o combate a ambos – estão na pauta da imprensa brasileira e, consequentemente, das conversas cotidianas da maior parte das pessoas. Os primeiros são objeto de um projeto de lei apelidado de “pacote do veneno”, aprovado em comissão especial no mês de junho e que, a qualquer momento, pode entrar em votação no plenário da Câmara dos Deputados. As fake news – e, com elas, o conceito de checagem de fatos – foram ganhando cada vez mais os holofotes desde as eleições americanas e, com a proximidade do nosso pleito (e a tábua de salvação que viraram para uma mídia em crise), agora ofuscam boa parte do restante do noticiário. Nesta semana, ambos se juntaram, em uma matéria da Folha de S. Paulo sobre “mitos e verdades” em relação aos agrotóxicos que gerou alguma polêmica e, mais uma vez, nos permite refletir, de um lado, sobre os desafios envolvidos na promoção da cultura científica e, de outro, sobre quão árduos devem ser os esforços voltados àquilo que eu chamo de educação para as mídias.

A matéria, intitulada “O que é verdadeiro e falso no debate dos agrotóxicos”, ganhou página inteira e, também, chamada na capa do jornal. Foi organizada no formato de 17 perguntas e respostas, divididas em quatro temas – Definição, Ambiente, Economia e Saúde – e respondidas com o objetivo manifesto de revelar “o que a ciência e os cientistas têm a dizer sobre o tema”. Eu não compartilho com alguns críticos a visão de que a produção buscou, deliberada e exclusivamente, o apoio aos defensores do uso indiscriminado de agrotóxicos. Acho que, inclusive, trouxe informações bastante relevantes sobre os riscos ao ambiente e à saúde, falando também de algo que geralmente aparece menos que o consumidor urbano no debate: do trabalhador e daquelas pessoas que vivem nas áreas rurais. Mas, apesar disso, também vejo grandes problemas, que atribuo, sobretudo, ao processo de edição.

Ao optar por esse formato de “mitos” e “verdades”, “verdadeiro” e “falso” – cada vez mais uma praga destes tempos de fake news –, reduz-se um esforço de reportagem aparentemente comprometido em mostrar nuances e contradições a um jogo de sim e não que, de fato, priva os leitores da oportunidade de reflexão. Ao, já na primeira resposta, afirmar que “agrotóxicos”, “defensivos agrícolas” e “pesticidas” são termos igualmente válidos para dar nome aos bois e, a partir daí, usá-los acintosamente como se fossem mesmo sinônimos, configura-se um discurso de pretensa neutralidade que só serve àqueles que podem se beneficiar de uma população mal informada sobre o que de fato está sobre a mesa de decisão. Ao falar em “guerra de versões” entre ambientalistas e ruralistas e recrutar a Ciência para “arbitrar” esta disputa como juiz neutro e competente, o texto contribui para que sejam obscurecidos os interesses envolvidos e se crie a falsa crença de que, se substituirmos a vilã ideologia pelo heróico conhecimento científico desinteressado, chegaremos fácil e impreterivelmente à melhor decisão para todos nós.

Agrotóxicos têm a sua utilidade, e vários dos problemas que causam estão associados ao uso excessivo ou inadequado. Da mesma forma, a estratégia de checagem de dados tem a sua relevância, mas, se usada indiscriminadamente, pode ter o efeito exatamente contrário àquele para o qual foi concebida. O conhecimento científico é uma das melhores ferramentas de que dispomos para viver melhor neste mundo, mas não é, de modo algum, infalível. Em todos os casos, não há caminho fácil: é preciso atenção à multiplicidade de aspectos envolvidos, de pontos de vista, de interesses, e há a necessidade de equilíbrio, de negociação, de atenção aos detalhes e às nuances, mais do que aos extremos. Urge, sobretudo, a concepção e concretização de processos educativos de elevada qualidade, abrangentes e democráticos, para os quais infelizmente ainda não há receita ou manual de instruções, e sem os quais nunca teremos participação cidadã em processos de tomada de decisão, relação crítica com a mídia e as tecnologias digitais de informação e comunicação e cultura científica disseminada.

Simples assim.

Boas leituras, e uma ótima semana.

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