Polêmica envolvendo infectologista amplia visibilidade da PrEP como estratégia de combate ao HIV

A primeira vez que eu ouvi falar em PrEP – profilaxia pré-exposição ao HIV – foi por causa da reportagem publicada há alguns dias na revista Época, que gerou reação indignada do infectologista Ricardo Vasconcelos, seguida por muitas outras, ao tratamento moralista, estigmatizante, preconceituoso e provocador de desinformação dispensado ao assunto pela revista. Depois, na esteira da polêmica, foram ficando cada vez mais visíveis fontes de informação confiáveis, ou novas fontes criadas após o desserviço da Época, que permitem às pessoas interessadas um olhar abrangente para essa alternativa que integra uma nova estratégia de combate à epidemia de HIV: a prevenção combinada.

Meu primeiro contato com o assunto, de fato, esteve relacionado a uma questão gramatical. A manchete, na capa da Época, é: “A outra pílula azul – O novo medicamento que está fazendo os gays abandonar a segurança da camisinha”. A partir da estranheza inicial frente à construção “os gays abandonar”, aparentemente compartilhada com várias outras pessoas, descobri que este infinitivo não flexionado não só está corretíssimo, como é a opção mais adequada! Mas foi só aí que a Época acertou.

Como alertou Ricardo Vasconcelos – um dos entrevistados para a matéria, médico infectologista no Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da USP, especialista em HIV e na profilaxia pré-exposição –, o texto reforça estigmas que já não são poucos ao retratar gays como promíscuos e responsáveis pela disseminação do HIV e de outras infecções sexualmente transmissíveis. Além disso, traz uma visão distorcida também da PrEP, adotada pelo SUS desde o final do ano passado e que tem colecionado evidências de eficácia na redução do número de novas infecções por HIV em todo o mundo e, também, no Brasil.

Não tive acesso ao texto completo, mas, dos 10 parágrafos iniciais liberados pela revista, os quatro primeiros são gastos na descrição de mau gosto de uma cena em uma boate que, como qualifica Vasconcelos, pinta a população gay como, além de extremamente promíscua, imunda, nojenta, disseminadora de coisas ruins. E é associada a este estigma que a PrEP é apresentada. No extremo oposto, a decisão pela adoção da PrEP no SUS – com a distribuição gratuita do antirretroviral Truvada – integra a estratégia de prevenção combinada, que representa um mudança de paradigma: da pretensão de controlar a vida sexual das pessoas para um acordo dialogado, combinado, que respeita as liberdades individuais e combina também diferentes estratégias, considerando o que a pessoa escolhe, o que é capaz de entender e de usar corretamente e constantemente. Além disso, os estudos têm mostrado que a adoção da PrEP, além de eficaz, não fomenta o abandono do uso da camisinha e reduz o número de parceiros sexuais, dentre outros cuidados que são ampliados a partir do contato permanente com ações de aconselhamento nos serviços de saúde.

A primeira reação de Ricardo Vasconcelos ao ter contato com a matéria foi expressar arrependimento por ter concedido a entrevista, em uma manifestação em sua página no Facebook, que rapidamente viralizou. Esta é uma reação comum entre especialistas que concedem entrevistas ou participam de outras iniciativas que conferem visibilidade ao seu trabalho: reclamar, ou recuar, quando essa visibilidade resulta em interpretações equivocadas – ou de má-fé, como no caso da Época – ou, inclusive, quando abre a possibilidade de críticas ao trabalho divulgado. Mas Vasconcelos, diferentemente de muitos colegas, não se contentou ou se escondeu atrás da acusação à mídia: passado o susto inicial, deixou bem claros os problemas da reportagem, foi atrás de alternativas, deu outras entrevistas esclarecedoras – com destaque à concedida ao Portal Dráuzio Varella –, garantiu outras reportagens – por exemplo, na Folha de S. Paulo – e divulgou as inúmeras notas de repúdio que surgiram e as boas fontes de informação, dentre as quais eu destaco o Portal PreEP Brasil e a página do Ministério da Saúde sobre o assunto.

Eu entendo a frustração de qualquer entrevistado quando vê o resultado da entrevista ser usado para o fim oposto àquele que o motivou a concedê-la. No entanto, para a Ciência como um todo e para a Saúde em particular, informação de qualidade e acessível é fundamental, ainda mais nos tempos difíceis em que estamos vivendo, em que proliferam, por exemplo, os discursos conservadores e fundamentalistas. Ricardo Vasconcelos sabe disso.

Boas leituras, e uma boa semana.

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