Notícias sobre árvore genealógica com 13 milhões de pessoas levam a uma reflexão sobre método científico – e, também, o jornalístico

A publicação, em 1o de março, da maior árvore genealógica já construída, na Science, rendeu um conjunto de notícias e a oportunidade de refletirmos sobre método – o científico e, também, o jornalístico. Ao ler a mesma notícia em veículos diferentes, vamos descobrindo algo diferente em cada versão, o que não significa necessariamente que uma reportagem seja melhor que a outra – ainda que algumas sejam mais completas –, mas sim evidencia como noticiar SEMPRE é fazer escolhas.

Em resumo, a notícia principal é justamente o tamanho da árvore genealógica, com 13 milhões de pessoas relacionadas ao longo de 500 anos e cerca de 11 gerações – incluindo o ator Kevin Bacon. Há uma outra informação essencial: o modo como a árvore foi construída, usando o banco de dados de uma plataforma online de “genealogia coletiva”, o site Geni.com. Porém, nem todas as matérias destacam exatamente essas informações. Os títulos e parágrafos de abertura de cada matéria (chamados de lead – ou lide, na forma aportuguesada – no meio jornalístico) nos ajudam a entender como sempre há inúmeras formas de olhar para um mesmo fato, além de ilustrarem a predileção pelo curioso e pelo inusitado, de um lado, e por resultados, em detrimento do processo e do método científicos, de outro.

Em O Globo, por exemplo, a manchete é o tamanho da árvore, mas, na linha fina – o subtítulo, novamente no jargão jornalístico –, o destaque vai para conclusões tiradas a partir de uma primeira análise dos dados, que dizem respeito à relação entre longevidade e genética, às migrações ao longo da história e a como a busca por parceiros amorosos foi se modificando. A forma como os dados foram coletados aparece apenas no final do texto, e o ponto principal – que árvores genealógicas são instrumentos valiosos para pesquisas em diferentes áreas do conhecimento e, até agora, só podiam ser construídas por processos extremamente trabalhosos – definitivamente não recebe a devida atenção.

Ausência do método científico

Esse foco nas conclusões já derivadas da árvore não é exclusividade do jornal brasileiro. A revista especializada New Scientist, por exemplo, aposta no humor em seu título para também jogar o foco em uma dessas conclusões, ao afirmar: “Maior árvore genealógica de todos os tempos mostra quando primos pararam de fazer sexo”. Até mesmo um dos principais periódicos científicos do mundo, a Nature, anuncia a descoberta com a manchete “Árvore genealógica colossal revela influência do ambiente sobre o tempo de vida”. No entanto, como registra o próprio autor do estudo, essas primeiras conclusões apenas “arranham a superfície” do que a árvore tem a oferecer. Ou, como muito bem compara a Superinteressante – em uma matéria que, de resto, também tem alguns problemas –, a árvore neste momento é como o lançamento do Falcon Heavy de Elon Musk que, apesar de ter colocado um carro no espaço (???!!?), tinha como objetivo real demonstrar o potencial da tecnologia.

Voltando a O Globo, o jornal não registra que o principal autor do estudo é também o diretor científico da empresa responsável pelo site de onde os dados foram retirados! Essa informação ganha especial relevância quando vemos, em outros veículos, como o estudo leva à necessidade de reflexões sobre a questão da privacidade dos dados pessoais depositados na rede, além dos vários vieses e manipulações possíveis considerando realidades e interesses econômicos. Essa omissão, juntamente com o destaque a resultados e outras características não detalhadas aqui por falta de espaço, ilustram bem como a cobertura de Ciência – e não apenas no Brasil – comumente falha em olhar para o interior da prática científica e para os caminhos percorridos na construção do conhecimento científico, aspectos com os quais é preciso haver familiaridade para que seja possível a consolidação de uma cultura científica e, assim, a existência de uma ciência verdadeiramente cidadã.

Mas, considerando toda essa discussão, qual foi a melhor matéria? Na minha opinião, a do The New York Times, a começar pelo seu título, que indaga: “Quando os americanos pararam de casar com seus primos? Pergunte à maior árvore genealógica do mundo”. Apesar de também apelar ao casamento entre primos, o jornal o faz em uma construção que evidencia, já na manchete, o fato da árvore ser um instrumento, um meio para um fim – vários, na verdade. Outro aspecto importante é que o texto é ilustrado com uma imagem que é a representação gráfica científica dos parentescos identificados, favorecendo assim a aproximação do discurso da Ciência – diferentemente das matérias que trazem retratos antigos de pessoas de uma mesma família, optando assim pelo lado anedótico da pesquisa. Por fim, é também a reportagem que mais informações traz sobre os procedimentos adotados no estudo e mais claramente aponta potencialidades futuras – bem como limitações e questionamentos – da ferramenta anunciada.

Em Português, minha dica é o texto publicado em El País.

Boa leitura, e até a semana que vem.

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